Artigo

Um delírio chamado poder moderador

José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.
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José Mário Wanderley Gomes Neto
é doutor em Ciência Política, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna "Ciência Política" da PB.

Em tempos de polarizações política e social calcificadas, na grata expressão cunhada por Felipe Nunes e Thomas Traumann, cada grupo busca interpretações peculiares da realidade que reflitam os próprios desejos e próprias aspirações, dentre as quais interpretações criativas de normas jurídicas que possam trazer reflexos de suas concepções sobre o Estado e sobre as instituições.

Dentre essas interpretações normativas peculiares, estava a afirmação, abalizada por supostos “juristas” conservadores e muito difundida nas redes sociais e por alguns meios de comunicação alinhados com o pensamento de que o artigo 142 da Constituição seria fundamento para a atuação dos militares como um quarto Poder, em função moderadora (quiçá substitutiva) dos papéis do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Mais um exemplo da infinidade de mentiras exponencialmente difundidas por quem delas se beneficia e consumidas por quem nelas gostaria de acreditar.

Na segunda-feira (8), encerrou-se o julgamento virtual da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.457, no qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), à unanimidade — incluindo os ministros Nunes Marques e André Mendonça, indicados pelo governo Bolsonaro — afastou qualquer interpretação (seja da Constituição, seja de legislação inferior) de que as Forças Armadas poderiam exercer um suposto poder moderador entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

Em seu voto, o relator, ministro Luiz Fux, afirmou que: “Confiar essa missão às Forças Armadas violaria a cláusula pétrea da separação de poderes, atribuindo-lhes, em último grau e na prática, inclusive o poder de resolver até mesmo conflitos interpretativos sobre normas da Constituição”. Ainda no seu voto, concluiu que a autoridade suprema do presidente da República sobre os militares é elemento relativo à hierarquia e à disciplina próprias do ambiente militar e “não se impõe à separação e à harmonia entre os poderes, cujo funcionamento livre e independente fundamenta a democracia constitucional”. 

Já a ministra Cármen Lúcia consignou: “Não há sequer referência, no sistema constitucional democrático brasileiro vigente, a qualquer atuação exorbitante ou autônoma das Forças Armadas em relação aos poderes constitucionais, nem contra os ditames do direito vigente, nem contra algum ou de todos os poderes constitucionais, nem contra a democracia. Golpear a Constituição desbordando do que nela definido para sua atuação é inconstitucional, ilegítimo, antidemocrático e inválido”.

Assentou, ainda, o ministro Flávio Dino: “Eventos recentes revelaram que ‘juristas’ chegaram a escrever proposições atinentes a um suposto ‘Poder Moderador’, que, na delirante construção teórica, seria encarnado pelas Forças Armadas.

Esses fatos, lamentavelmente, mostram a oportunidade de o STF repisar conceitos basilares plasmados na Constituição vigente — filiada ao rol das que consagram a democracia como um valor indeclinável e condição de possibilidade à concretização dos direitos fundamentais de cidadãos e cidadãs”. Dino arremata consignando que “o saudosismo institucional pelo Poder Moderador parece ainda correr nas veias autoritárias dos pouco crentes na democracia e na capacidade das instituições e dos poderes constitucionais de assegurarem a legitimidade da atuação dos cidadãos numa sociedade democrática e sem tutores ou moderadores de ocasião segundo seus desejos e desvarios”. 

Na complexa dinâmica institucional interativa entre os poderes constituídos do Estado brasileiro, é incabível, sob o texto de nossa Constituição, qualquer ato interventivo da caserna, pois as Forças Armadas têm poder limitado, restrito às suas atribuições constitucionais (1) de defesa da Pátria contra ameaças externas, (2) de defesa e proteção dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e (3) de garantia da lei e da ordem pública em circunstâncias excepcionais aprovadas pelo Congresso Nacional, não sendo possível qualquer interpretação do texto constitucional que permita a sua utilização para indevidas intromissões no regular funcionamento dos poderes, assim como para seu envolvimento em aventuras de natureza golpista.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.