Artigo

Um momento 1937?

Paulo Peres
Especialista em análise institucional, instituições políticas brasileiras, partidos e eleições. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
Especialista em análise institucional, instituições políticas brasileiras, partidos e eleições. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A Agência Internacional de Energia [IEA] acaba de publicar o seu relatório de julho. O documento prevê uma catastrófica redução no provimento de gás russo à Europa, algo em torno de 55% a 75%, até 2025. Não se deve descartar, entretanto, um cenário ainda pior: a interrupção total do fornecimento até 2023.

As causas de tudo isso são, essencialmente, políticas. A desastrada estratégia de fazer da Rússia uma ilha cercada de membros da Otan por todos os lados, cujo movimento mais decisivo foi a lenta e gradual atração da Ucrânia para a sua órbita, desencadeou a reação militar liderada por Putin. Ato contínuo, os Estados Unidos, com os seus aliados, puxaram a lista de sanções políticas e econômicas contra os russos; dentre elas, a restrição ao petróleo e ao gás. 

Obviamente, já se poderia prever que tal medida provocaria um aumento drástico no preço da energia, com efeitos sistêmicos. Para agravar a situação, os EUA e a UE ampliaram as sanções para punir qualquer empresa ou país que, de alguma maneira, lide com o petróleo russo, inclusive na área de seguros. Com isso, os sócios da Otan perderam um precioso mecanismo de rastreio das vendas, abrindo uma enorme brecha para o escoamento indetectável do produto, que passou a ser negociado, sem seguro, com pequenas petroleiras chinesas. Estas, por sua vez, repassam a compra a grandes petroleiras chinesas e indianas. 

Desse modo, além de ter reduzido ainda mais a oferta de petróleo aos países europeus, esse tipo de transação estendeu a rota de distribuição, com nova pressão inflacionária sobre os preços. Ao fim e ao cabo, as sanções não apenas foram incapazes de conter as vendas russas como incrementaram os seus ganhos. E mais:  aceleraram a crise europeia.

Longe de estar preparada para esta hecatombe econômica, a Europa foi pega de “calças curtas”. Já agora, neste mesmíssimo momento, a Alemanha, cuja economia é a mais pujante da região, conta com apenas 62% de reserva de gás – um nível muito abaixo dos 80% recomendados por Bruxelas para esta altura do ano. Além de o preço da energia já estar chegando ao telhado, as exportações de bens e serviços alemães, neste último mês, foram menores do que as importações. Algo que não acontecia há três décadas e, ao que parece, poderá firmar um padrão que persistirá durante meses. A Espanha, para citar outro exemplo, tem uma reserva de 72,4% e, ainda, sofre pressões inflacionárias extras, devido ao aumento dos custos do gás importado da Argélia, país com o qual anda às turras, e que é o seu principal fornecedor.

Sem se dar ao luxo de seguir na tática do avestruz, instituições financeiras internacionalmente reconhecidas, como o J. P. Morgan, já levantam a cabeça para alardear o tamanho monumental dos estragos econômicos que a Europa e os Estados Unidos terão pela frente, devido à redução da oferta de petróleo e gás provindos da Rússia – sem contar a escassez de alimentos, que, embora atingindo mais duramente os países pobres europeus, africanos e latino-americanos, levará fome e insegurança aos Estados da Otan. De fato, o Banco da Inglaterra, sem meias-palavras, alertou que o endurecimento da política monetária, a propósito de conter a inflação, será um tiro pela culatra dos bancos centrais, pois prejudicarão o crescimento econômico. Estagflação à vista!

Nos Estados Unidos, de uns dias para cá, se tornou ponto pacífico que o país está em recessão. Joe Biden – cuja popularidade caminha para o rés do chão – e o Partido Democrata deverão sentir o peso da insatisfação popular nas eleições de meio de mandato, em novembro. Na Europa, ainda não se sabe se haverá recessão ou depressão, mas a crise política se espalha rapidamente, à medida que as manifestações se avolumam. Na Inglaterra, em paralelo com o aumento dos preços, episódios polêmicos, envolvendo o governo, e uma debandada de ministros levaram Boris Johnson a perder a confiança do próprio partido na Casa dos Comuns e, não tendo à mão qualquer outra alternativa, acabou de renunciar ao cargo de primeiro-ministro. Na França, Macron inicia o segundo mandato com um olho na crise europeia e o outro na oposição parlamentar, que ganhou força tanto na direita como na esquerda.

Sem vislumbrar uma saída sensata para esta encalacrada autoimpingida, as lideranças da Otan decidiram aumentar a temperatura da sua ”guerra-já-nem-tanto-fria” com Putin. No documento final do encontro de Madrid, realizado há poucos dias, afirmaram que a China é um desafio à aliança atlântica – de fato, o seu grande alvo estratégico – e que a Rússia é uma ameaça direta à segurança da Europa. Tudo agora está escancarado!

Consoante a isso, o general Christopher Cavoli foi nomeado o novo comandante–geral da Otan, em 1º de junho. Na cerimônia de posse, em Stuttgart, Mark Milley, chefe do Estado Maior dos EUA, disse que Cavoli é o comandante necessário, para a missão necessária, no momento necessário. Reforçando tal posição, o contingente militar da aliança, com 300 mil soldados, foi colocado em estado de alerta. No dia 4 de julho, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, declarou que, na verdade, os países-membros já estavam se preparando para o conflito desde 2014 – não por acaso, o ano da revolução colorida na Praça de Maidan, na Ucrânia. Por isso, disse ele, decidiram aumentar a presença da Otan naquele entorno, investir mais na defesa e elevar o nível de alerta. A propósito disto, a Alemanha, sem política armamentista desde a derrota nazista, voltou à corrida dos investimentos bélicos. Em entrevista, o chefe do exército britânico, general Patrick Sanders, disse que o país deve se preparar para a guerra, pois este seria o ‘momento 1937’ dos ingleses.

O que leva tais governos a tamanha desfaçatez? Inabilidade política? Incompetência? Interesses insondáveis? Ignorância?  Rússia e China não são a Itália e a Alemanha da Segunda Guerra. As guerras contemporâneas são muito diferentes; e, principalmente, o potencial de um conflito nuclear é real.

Observando essa sequência de erros dos líderes ocidentais, outro meme de Game of Thrones vem bem a calhar:

“You know nothing, Jon Biden Johnson Scholz Leyen Sánchez Trudeau Snow”.

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