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Um peixe chamado Lula — e outro chamado Raoni

Agência BORI
é um serviço único que conecta a ciência a jornalistas de todo o País. Na BORI, profissionais de comunicação cadastrados encontram pesquisas científicas inéditas e explicadas, além de materiais de apoio à cobertura jornalística e contatos de cientistas de todas as partes do Brasil preparados por nós para atender à imprensa. Acesse: abori.com.br
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é um serviço único que conecta a ciência a jornalistas de todo o País. Na BORI, profissionais de comunicação cadastrados encontram pesquisas científicas inéditas e explicadas, além de materiais de apoio à cobertura jornalística e contatos de cientistas de todas as partes do Brasil preparados por nós para atender à imprensa. Acesse: abori.com.br

Na contramão da devastação dos biomas, a ciência continua descobrindo novas espécies de plantas e de animais, como peixes. Em artigos inéditos publicados na revista científica Neotropical Ichthyology, pesquisadores descrevem duas espécies de peixes recentemente descobertas na Caatinga e na Amazônia, batizadas com o nome de personalidades políticas: o Hypsolebias lulai, em homenagem ao presidente Lula, e o Scobinancistrus raonii, em homenagem ao cacique e ativista indígena Raoni Metuktire. O primeiro foi descoberto na bacia do rio Trairi, no Rio Grande do Norte, por cientistas do Instituto Peixes da Caatinga das universidades federais da Paraíba (UFPB) e do Rio Grande do Norte (UFRN), da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e da Universidade de Taubaté (Unitau). 


A espécie foi vista pela primeira vez em agosto de 2022 por um agricultor em um assentamento no Estado potiguar, que fotografou o peixe e enviou a imagem para Telton Ramos, biólogo do Peixes da Caatinga e da UFPB. O pesquisador, então, organizou uma expedição financiada pelos seguidores das redes sociais do instituto para coletar amostras da espécie na região. Essa nova espécie pertence a um dos grupos mais ameaçados do Brasil: chamado de “peixe das nuvens”, surge em poças ou lagoas temporárias formadas após a chuva, que é quando os seus ovos enterrados eclodem e sua população se restabelece. Esse ciclo de vida leva os ribeirinhos a associar o aparecimento desses animais aos pingos de chuva das nuvens — por isso, peixes das nuvens.

Como os seus parentes, o Hypsolebias lulai tem um ciclo de vida rápido de três meses para crescimento e reprodução antes da poça ou lagoa temporária secar e toda a população de peixes morrer. “Graças ao ciclo de vida ser mais curto, espécies de peixes das nuvens estão sendo utilizadas em estudos sobre envelhecimento humano”, explica Ramos. O Hypsolebias, que mede cerca de 5 centímetros, apresenta um número maior de raios na nadadeira dorsal e de listras no corpo, além de coloração azul metálica, diferentemente dos parentes. A sua localização chamou a atenção dos pesquisadores: o parente mais próximo dessa nova espécie está no Ceará, a cerca de 500 quilômetros de distância. Isso levanta algumas hipóteses sobre as mudanças do curso do Rio São Francisco, ao longo de milhares de anos. “Esse rio já mudou de curso várias vezes, o que explica a existência de espécies parentes em lugares diferentes. É possível que ele já tenha se conectado ao Rio Piranhas, que é o mais próximo de onde a nova espécie foi encontrada, mas ainda é preciso que mais estudos sejam realizados na região”, comenta Fábio Origuela, do Instituto Peixes da Caatinga, coautor do estudo.

De acordo com os pesquisadores, a nova espécie também reforça o fato de que a Caatinga é um bioma diverso. “Falamos pouco de Caatinga. Existe a ideia de que é um local pouco diverso, seco, mas é riquíssima em biodiversidade”, aponta Ramos. A decisão de nomear o animal em referência ao presidente Lula foi para dar mais visibilidade aos grupos de peixes das nuvens. “Estamos aquém do que deveríamos no conhecimento da diversidade e conservação desse grupo de peixes, sabemos muito pouco ainda — e o que não tem nome não é protegido”, afirma o pesquisador. 

Rio Xingu, hábitat de novas espécies

A região onde foi construída a barragem da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, também abriga espécies ainda não descritas pela ciência. É o que revelou um grupo de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e da Universidade Federal do Pará (UFPA) ao descobrir, no local, uma nova espécie de peixe cascudo.

Scobinancistrus raonii, que tem tons de verde-oliva-escuro a preto, com manchas amarelas redondas, pode chegar até 17 centímetros de comprimento. O nome foi escolhido para homenagear o líder indígena Raoni Metuktire, cacique dos caipós, povo que vive ao longo dos afluentes do Rio Xingu, nos estados do Pará e de Mato Grosso. Ele é um dos ativistas indígenas mais conhecidos no mundo por sua luta pela preservação da fFloresta Amazônica, se colocando contra, em 2010, à construção da usina de Belo Monte. A descrição da nova espécie foi feita após a análise de 38 exemplares de Scobinancistrus, coletados em expedições ao Xingu. Esses peixes são conhecidos de comunidades locais desde a década de 1980 como tubarão, por causa do formato roliço. Foram analisados as tonalidades e o formato das manchas, a forma do corpo, os dentes, a boca e outras estruturas que identificam os animais.

Segundo Lúcia Rapp Py-Daniel, uma das autoras do estudo, a descrição da espécie serve para confirmar a novidade. “A gente já conhece esse bicho há muito tempo. Ele já era vendido no comércio de pesca ornamental, mas, na época, não sabíamos em qual gênero ele se encaixava. Foi uma surpresa ver que se tratava de uma nova espécie”, afirma a pesquisadora do Inpa. A nova espécie de Scobinancistrus habita a área alterada pela construção da barragem de Belo Monte, em Altamira, correspondendo à área da Volta Grande do Xingu até a confluência com o Rio Iriri. A descoberta ajuda a confirmar que existem novas espécies de animais habitando a região afetada pela hidrelétrica — e que é importante garantir a qualidade da água para protegê-las.

Segundo Lúcia, o trabalho também serve para suscitar o debate em torno do controle hidrológico da região, pois algumas espécies demandam água em abundância para a sobrevivência. “A área da Volta Grande do Xingu é extensa e tem espécies que só ocorrem lá, então, qualquer alteração do ambiente natural é gravíssima”, conclui. Os pesquisadores responsáveis pela descrição das duas espécies de peixe das nuvens e cascudo seguem monitorando a população desses animais com a ajuda de moradores da região. Eles esperam que o registro dos gêneros ajude na formulação, por órgãos competentes, de estratégias de conservação desses animais.

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