Artigo

Uma escolha difícil

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

No domingo 10 de abril de 2022, definiu-se o duelo do segundo turno da eleição presidencial francesa, entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen, repetindo-se o resultado do primeiro turno de 2017. É verdade que, por 1,2% de diferença, o candidato do França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, não vai no lugar de Le Pen e que, em relação a 2017, houve um aumento de abstenção eleitoral, chegando a 26% do eleitorado francês.

O resultado do primeiro turno já está sendo chamado de “chantagem”, pelos movimentos e partidos de esquerda franceses; e muitos têm apontado a dificuldade em escolher entre “fascismo mitigado” (Le Pen) e “liberalismo autoritário” (Macron).

Em parte, a repetição do resultado se deve aos impasses criados pela União Europeia, que alimentou um monstro – a Troika – uma entidade sem legitimidade democrática que, mesmo assim, detém o poder real e as regras do continente. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia determinam as políticas de todos os governos nacionais, avaliam sua implantação e decidem sobre os ajustes compulsórios.

A soberania clássica, marcada exatamente pelo direito de decidir sobre a vida e a morte de seres humanos, é o direito que a Troika impôs aos gregos durante a crise da Grécia, ao ameaçar de morte e asfixia todo o país. Esse exercício da soberania não emana de nenhum parlamento e revela uma completa submissão do político ao financeiro. Como diz Enzo Traverso, “A Troika é um tipo de ditadura financeira, um Leviatã neoliberal. Em síntese, é o ‘ordoliberalismo’ de Wolfgang Schäuble: não é o capitalismo submetido às regras políticas, mas um capitalismo financeiro que dita suas próprias regras”. [1]

O nomos (o poder de decisão), que é incorporado e ao qual todas as regras jurídicas estão submetidas, é econômico e financeiro, não político. Portanto, a contradição constitutiva de nossas democracias modernas, em que uma racionalidade jurídico-política coexiste com uma racionalidade econômico-gerencial, finalmente encontrou uma solução ao substituir o corpo político da democracia por um corpo técnico-burocrático do capital multinacional.

Nesse sentido, Macron parece mais próximo desse projeto. Pois apresenta-se como outsider da política, apesar de ser filho do establishment. Formado na ENA (escola da elite tecnocrática francesa), ex-diretor do banco de negócios Rothschild e ministro da Economia de François Hollande, Macron se sente à vontade ao ser chamado de homem de Bruxelas, muito mais próximo da City de Londres e de Wall Street do que das regiões pobres e rurais da França, que formaram o contingente dos coletes amarelos. Proclama-se livre das ideologias do século XX: para além da esquerda e da direita.

Com sua imagem de jovem ousado e educado, Macron aprendeu a lição de que a “virtude” de um autêntico político consiste em sua habilidade de explorar as circunstâncias (fortuna) para conquistar o poder. Realmente, ele se deparou com circunstâncias extremamente favoráveis: em 2017, a esquerda estava exaurida pelo desgaste de ter ocupado o poder, a direita estava mergulhada em denúncias de corrupção, e o sistema eleitoral fez com que ele saísse dos 24% do primeiro turno para um voto por aclamação no segundo, jogando com os medos do crescimento da Frente Nacional. Agora, em 2022, podemos observar a mesma estratégia eleitoral.

Segundo seus críticos, por trás dos modos afáveis, Macron esconde uma nova concepção da política, que expressa nele um ethos de nova guerra da elite contra o povo, com uma mistura de polidez do homo economicus com a destruição da soberania popular. Macron seria, nesse sentido, um representante de uma visão de mundo que visa a transformar a política em espaço de pura “governança”, distribuição de poder e administração de grandes recursos. A França desenhada por Macron tem um slogan: a StartUp Nation. Encarnando um projeto político que esvazia as instituições republicanas e reduz sua “constituição material” a um amálgama de poderes econômicos, máquinas burocráticas e governo realizado através de decretos e decisões arbitrárias tomadas no sigilo de um obscuro Conselho de Defesa.

O populismo tem aparecido como o termo que personifica a reação a esse projeto. Mas ele não parece adequado, pois sua utilização mais silencia do que mostra as reais causas das críticas que devem ser feitas a um projeto político que busca esvaziar a democracia. Na França, em particular, nas últimas três décadas, a alternância de poder entre a centro-esquerda e a centro-direita não significou nenhuma mudança essencial nas políticas governamentais. E esse resultado está profundamente relacionado não somente à Troika, mas também à reificação do espaço público, absorvido por monopólios midiáticos, e, por outro lado, ao esvaziamento do fundamento da soberania popular. Nesse sentido, o crescimento de reação a esse projeto é inevitável. E os críticos que o denunciam como “populista” muitas vezes são os responsáveis por esta situação. São piromaníacos disfarçados de bombeiros.

Agora, em 2022, uma dessas versões de reação está encarnada na figura de Marine Le Pen, que, desde 2017, tem promovido mudanças e expulsões das alas consideradas extremistas do Front National, movimento criado pelo seu pai. Em substituição a este, Le Pen criou o Rassemblement National (RN), que visa representar um projeto político de resgate e de unidade da identidade nacional e da defesa da França “autêntica” e “esclarecida”.

Le Pen buscou “des-demonizar” o rótulo de extrema direita e sua relação com o racismo e a xenofobia. Deslocando as questões culturais para a crise econômica. Esta seria criada por um fluxo avassalador de imigrantes, somada a uma crise de (in)segurança, trazida pelo comportamento criminoso nas banlieues (subúrbios de maioria populacional formada pela classe trabalhadora e minorias étnicas) e pelo perigo belicoso do islamismo.

Entre 2017 e 2022, Le Pen buscou desenvolver componentes sociais no seu programa de governo e adotou uma ambiguidade prudente para falar de direitos de mulheres e da comunidade LGBTQIA+. Seus discursos adotaram uma “transgressão moderada”, com a utilização da estratégia do “assobio de cachorro”: usar expressões com uma camada implícita de significado que seus apoiadores nacionalistas interpretarão de maneira diferente de outros membros da audiência.

Nesse sentido, ela se apresenta como a principal adversária de Macron e a representante do sentimento de exclusão e de marginalização de uma grande parte da população francesa, assim como símbolo da ascensão de uma cólera anti-establishment colada a um ódio crescente às minorias e à produção de inimigos internos e externos.

Os críticos de Le Pen apontam que todos os seus discursos mitigatórios são pura retórica para esconder a realização de um projeto profundamente racista, sustentado por políticas de segurança segregacionistas. E sua defesa de aprovação do projeto de lei que prevê a exclusão de ilicitude dos crimes cometidos por policiais contra os movimentos sociais e as populações periféricas reflete essa concepção. Os franceses realmente vão ter que fazer uma escolha bem difícil. A questão é que, independentemente do resultado eleitoral, a imposição de um Leviatã neoliberal produz um deslocamento da bio para a necropolítica. Onde as escolhas políticas não aparecem mais como alternativas de bem-estar para a população, mas em como manter a quantidade de mortes diárias em relação proporcional ao aumento dos lucros e da concentração, acumulação e liberação do capital.


[1] TRAVERSO, Enzo.  “From Fascism to Postfascism”, do livro The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right, VERSO: EUA, 2019.

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