Nobre, militar, conspirador político e moralista sem papas na língua, François de La Rochefoucauld era um pessimista incorrigível. Tornou-se um dos imortais do século 17 em razão da incansável referência que se faz até hoje, seja nos meios literários, seja nos meios jornalísticos, à sua máxima mais famosa: “A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”.
Eu mesmo ouvi esse aforismo um punhado de vezes durante um curso de economia nos meus tempos de graduação. O professor, um tipo carismático que sabia dosar acidez, vivacidade e erudição (embora teimasse em usar uma duvidosa gravata-borboleta que toda semana lhe garroteava o pescoço), sempre que podia dava um jeito de tascar a frase entre uma argumentação e outra. Batata! Dali vinha o tom de severidade e ironia com que se atracava com as falácias e tapeações das teorias acerca do funcionamento dos mercados, do sistema financeiro, dos governos e, principalmente, das relações internacionais.
“No frigir dos ovos”, dizia ele, “o fato mais básico da vida é a brutal luta pela apropriação dos recursos materiais”. Comprazendo-se com a própria perspicácia e, como de hábito, com um semblante zombeteiro, emendava a moral da história: “Não se iludam, meus caros, no mundo da economia e da geopolítica, a democracia e outras ideologias costumam ser virtudes homenageadas com a hipocrisia”.
Desde então, toda a vez que as circunstâncias puxam pelo fio da minha memória essa frase batida — mas nem por isso desgastada —, lembro-me do professor de economia e, claro, da máxima de Rochefoucauld. Este 30 de maio foi um desses dias. A fim de retomar a União das Nações Latino-Americanas (Unasul), chefes de Estado dos países da região se reuniram em Brasília para discutir temas relevantes que concernem à integração mais ampla e consistente do bloco. “Enquanto estivermos desunidos”, disse Lula, no discurso inaugural, “não faremos da América do Sul uma região desenvolvida em todo o seu potencial”.
Mas, que nada! O assunto que predominou na grande imprensa nacional e internacional, não por acaso — tampouco por virtudes democráticas —, foi o restabelecimento das relações diplomáticas do Brasil com a Venezuela (uma ditadura!), a presença do presidente Nicolás Maduro (um ditador!) e a escorregadia palavra “narrativa” usada por Lula (um amigo de ditadores!) para descrever a delicada situação venezuelana no igualmente escorregadio universo estadunidense-reinunidense-otaniano (faróis da democracia!).
Esqueçamos que a Venezuela tem uma vasta fronteira na região amazônica com o Brasil. Olvidemos que o país tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo. Que nem passe pela nossa cabeça que a Venezuela é um enorme mercado para os produtos brasileiros. Deixemos de lado que, de acordo com a Comissão para a América Latina e o Caribe (Cepal), a economia venezuelana cresceu acima dos dois dígitos em 2022. Deixemos para lá que os embargos econômicos impostos ao país violam os direitos humanos da sua população. Desconsideremos qualquer senso de empatia para com os nossos irmãos latino-americanos da Venezuela — que, no fim das contas, “não têm nada que ver com a paçoca” (como dizia um amigo e colega do mesmo curso de economia).
Sim, vamos a isso! O “ditador Maduro”, como já é de praxe nominá-lo nos grandes meios, como um fiel herdeiro do chavismo, ataca a liberdade de imprensa, oprime as oposições e viola os direitos individuais. Foi o que uma comissão da ONU escreveu num relatório sob a coordenação de Michele Bachelet, ex-presidente centro-esquerdista (imagine aqui um emoji com os olhos bem arregalados de espanto) do Chile, que por sua vez, no momento, tem um presidente ainda mais à esquerda (imagine agora um emoji com lágrima nos olhos de tanto rir — tá, sou cringe), Gabriel Boric — que, em dueto com o direitista Lacalle Pou, presidente do Uruguai, também condenou a ditadura venezuelana.
Valei-me Rochefoucauld! Vejamos: a hipocrisia pode ser um ato deliberado de quem quer burlar para tirar proveito ou, então, um produto do autoengano de quem sucumbe, de boa-fé, à prestidigitação do hábil hipócrita. Nunca é demais lembrar que hypokrités era o ator principal nas peças teatrais da Grécia Clássica, que recebia tal designação graças ao seu posicionamento afastado (krinein) do coro, situado numa área abaixo (hypo) do palco. Inicialmente neutro, esse sentido de encenação vinculado à palavra, com o tempo, ganhou uma conotação moralmente negativa, assumindo a acepção de astúcia, engodo ou sedução contra alguém ou o público. A hipocrisia, enfim, é a prática da dissimulação, que se presta à aplicação de critérios diferentes para julgar fatos semelhantes conforme as crenças e as conveniências do momento.
Aceitando como verdadeiras todas as acusações contra o governo venezuelano, é forçoso perguntar: por que não bordamos no peito de Bush pai, Bush filho, Clinton, Obama, Trump e Biden a mesma letra escarlate que aponta a “traição à democracia”? Aliás, por que não incluir nessa lista de Salem os presidentes Truman, Eisenhower, Johnson, Nixon, Ford, Carter e Reagan? Afinal, como deveríamos rotular os governos que promovem guerras e golpes de Estado que não apenas corroem as democracias dos outros como destroem nações, geram crises humanitárias e ceifam milhões de vidas?
Mesmo em casa, os governos norte-americanos não são democratas exemplares. Ou são? Espionar os próprios cidadãos, como denunciado por Snowden, é o quê? Trancafiar Assange por fazer jornalismo investigativo a serviço da cidadania e da segurança mundiais não é violar a liberdade de imprensa? O que dizer das torturas na prisão da Baía de Guantánamo? O que dizer do impiedoso bombardeio à população civil de Belgrado, em 1999, que atingiu até a embaixada da China? O quanto foi democrático arrasar o Iraque, destroçar a Líbia, ocupar o Afeganistão por 20 anos e seguir dilapidando a Síria? E, no entanto, se Biden chegasse aqui amanhã, seria saudado como o casto líder do mundo livre. Ele, sim, pode se reaproximar da Venezuela e fazer fist-bump com o Mohammad bin Salman (MBS), da monarquia absolutista teocrática da Arábia Saudita, para satisfazer os interesses das elites do complexo industrial militar do seu país sem macular em nada a democracia.
Valei-me Rochefoucauld! Se Lula é amigo de ditadores, o que dizer de Fernando Henrique Cardoso (FHC)? Durante oito anos de mandato, FHC visitou a Venezuela cinco vezes (1995, 1997, 1998, 2000 e 2001) — nas duas últimas, Hugo Chávez já comandava o país. Inclusive, em 2001, FHC compareceu à inauguração de uma obra conjunta, cuja solenidade contou com a presença de Fidel Castro. Assombrem-se: Castro e Chávez fizeram rasgados elogios públicos à política de Reforma Agrária que o governo tucano estava a implementar. Queixos caídos agora: de mãos dadas e sobrepostas, o trio posou para as câmeras jornalísticas em desabrido congraçamento registrado para a posteridade. Ah, sim, FCH também foi às “ditaduras comunistas” da China, em 1995, e de Cuba, em 1999, quando se tornou o primeiro presidente brasileiro a visitar a “ilha de Castro”. Em 2002, após superar uma tentativa de golpe de Estado, Chávez telefonou a FCH para lhe agradecer por ter se levantado contra a sua deposição — como revelado por Matias Spektor, em seu interessante livro 18 Dias (Editora Objetiva, 2014), Chávez tratava FHC como “mi maestro”. O que a imprensa disse sobre tudo isso à época? Convido os curiosos a conferir.
Por agora, fica a saudade daquelas aulas do professor de economia! Ele nos mostrou que a geopolítica é cheia de artimanhas, como já tinha ensinado o sábio florentino que tentou instruir os príncipes, mas que a gente pensava ser coisa ultrapassada do século XVI. Contudo, verdade seja dita, ao nos sacar do autoengano, esse miserável abençoado nos impediu de seguir salvando o mundo nas nossas rodas de cerveja.
Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.