Na ciência política, usamos um termo para denominar a arte de desenhar arranjos institucionais que sejam capazes de produzir efeitos políticos considerados desejáveis: engenharia constitucional. Ao conjugar ciência com arte (conhecimento aplicado), os cientistas políticos operam em dois níveis articulados: (1) o exame lógico de princípios e pressupostos acerca do funcionamento do mundo político e (2) a análise empírica de como tais princípios e pressupostos se comportam no plano da realidade. Com base nisso, apontamos as vantagens e desvantagens de cada modelo institucional.
Em seus primórdios, a ciência da política de Platão e Aristóteles nos ensinou que, além das (a) virtudes cívicas dos cidadãos, uma comunidade política justa e próspera depende, sobretudo, das suas (b) leis. Depois de séculos de conhecimentos acumulados, os teóricos políticos modernos perceberam a centralidade das regras que estruturam o jogo político em dois aspectos: (c) referente à fonte da autoridade política (em nome de quem é exercida) e (d) concernente à sua distribuição social (por quem e como é exercida).
Quanto à origem, a autoridade pode advir (1) da força, (2) de Deus, (3) da tradição ou (4) da vontade popular (diretamente ou por representação). Quanto à sua distribuição, a autoridade pode ser exercida de forma mais ou menos concentrada e, portanto, com menor inclusão social (no limite, temos as ditaduras), ou de maneira mais ou menos fragmentada, o que implica a incorporação de uma diversidade de atores aos processos deliberativos (no limite, as democracias pluralistas).
Em geral, as instituições políticas contemporâneas são desenhadas segundo o princípio da soberania popular, acrescido do caráter representativo. Em relação à distribuição do poder, o constitucionalismo moderno proveu os atuais regimes democráticos de uma arquitetura institucional caracterizada pela separação das instâncias decisórias. Neste caso, o intuito é evitar possíveis arbítrios – seja do Estado, seja da sociedade – contra os indivíduos.
John Adams, um dos pais fundadores da república norte-americana, reconheceu que a construção histórica desse conhecimento (ciência) e a sua aplicação (arte) foram produtos da “divina ciência da política”. Uma vez que “as bênçãos da sociedade dependem totalmente das constituições dos governos”, observou, a Ciência Política se incumbiu de elucidar os princípios e os mecanismos da governação orientada pelas regras constitucionais.
Em linhas gerais, portanto, o modelo de democracia que se difundiu depois da Segunda Guerra resultou dos embates pelo poder e pelo disciplinamento do seu exercício, por um lado, e dos debates oriundos da Ciência Política de cada período histórico, por outro. Com efeito, a grave crise que a democracia vem enfrentando nos últimos anos estimula a maioria dos cientistas políticos a sair em defesa desta forma de governo.
Dois desafios devem ser enfrentados: (1) compreender as causas da enfermidade e (2) encontrar os remédios para restabelecer a sanidade desse modelo constitucional. Por hábito de formação, muitos de nós procuramos as explicações e os remédios em fatores institucionais: seria o presidencialismo? O multipartidarismo? As regras eleitorais? A forma de financiar as campanhas? A estrutura do processo legislativo? O sistema Judiciário? As organizações partidárias? O ativismo político das Formas Armadas, como parece indicar o caso brasileiro? Ou seriam, ainda, outras dimensões da estrutura institucional?
Por trás desta linha de raciocínio, nosso ponto de apoio é a suposição de que a democracia seja um arranjo institucional que, se estabelecido adequadamente, o seu funcionamento independerá das tramoias, das trapaças e das variadas modalidades de golpes dos atores individuais e/ou coletivos. Mais ainda, supomos que a democracia seja, de fato, um produto de exportação dos países mais poderosos cujo real objetivo é a promoção da “paz perpétua universal”.
No entanto, a democracia não é imune à crueza dos interesses de grupos, grandes corporações e da geopolítica. Como evidenciam diversos acontecimentos recentes e mais antigos, espionagem, “guerras híbridas”, invasões e retiradas desastradas de países pobres e complexos, uso do meio ambiente como arma política, hipocrisia nos discursos e alianças são atos corriqueiros que sugerem que a democracia talvez seja a fina camada da superfície de um rio em cujas profundezas se digladiam piranhas, crocodilos e anaconda, enquanto nós, os peixinhos dourados, nadamos distraídos.
Tenho pensado nisto nestas últimas semanas. Então, lembrei-me de um episódio que nunca saberemos se de fato ocorreu, mas que vale como provocação. Segundo relatos, no encontro dos líderes dos Brics, em julho de 2015, Vladimir Putin teria voltado a alertar Dilma Rousseff sobre as ameaças ao seu mandato. Em dado momento, ele teria lhe feito esta pergunta, digamos, capciosa: “Você ainda acredita em democracia?”.
Seria esta uma manifestação de desprezo à democracia, muito comum em líderes autocráticos? Ou seria a incômoda constatação da superficialidade da democracia por um observador privilegiado da política internacional?
Confesso que fiquei com a pulga atrás da orelha: quais as implicações disso para a ciência da política? Será que fixamos a nossa observação apenas na superfície deste rio caudaloso da vida social? Como “eu quase que não sei de nada, mas desconfio de muita coisa”, tal qual Riobaldo, me garrei a cogitar: será que a tarefa da Ciência Política é muito maior do que havíamos pensado? Afinal, “quem rala no aspro não fantaseia”.
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