7 de setembro: fragmentos resguardados

05 de setembro de 2022

Na história do Brasil, há uma série de eventos e personagens que, durante bom tempo, ficaram à sombra da percepção popular. Mas isso é algo que já está mudando, pelo menos no meio editorial. Prateleiras de livrarias físicas e digitais chegam a este Bicentenário da Independência repletas de títulos que superam os clichês e proporcionam um entendimento mais amplo de como viemos parar aqui.

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Mais do que celebrar a autonomia política em relação a Portugal, o Bicentenário da Independência é uma forma de revisitar a história do Brasil por novos ângulos, emergir personagens pouco valorizados ou esquecidos no passado e destacar o papel de grupos relegados ao segundo plano no episódio, como negros e mulheres. A data também permite uma reflexão sobre o País atual, sob o ponto de vista social, político e econômico. Ciente disso, o mercado editorial oferece diversos lançamentos que jogam luz sobre o nosso passado e fornecem pistas de como deve ser o nosso futuro.

“O brasileiro precisa conhecer melhor a sua história para entender os seus problemas endêmicos e resolvê-los”, afirma Paulo Rezzutti, que está lançando Independência: A história não contada (LeYa Brasil). O livro parte de um episódio pouco conhecido, mas que ilustra o descaso com a nossa memória: a coroa de Dom Pedro I, tida como perdida por décadas, quase foi derretida pela Casa da Moeda, em 1943, em meio a várias outras peças de ouro sem valor histórico.

Rezzutti também lança um box com edições ampliadas de D.Pedro e D.Leopoldina (LeYa Brasil). Com base em documentos citados nas novas edições, o autor elimina a hipótese de que Dom Pedro I tenha morrido de sífilis. O monarca, na verdade, morreu de tuberculose.

“Um povo que não estuda história não consegue entender a si mesmo”, afirma o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que acaba de lançar a edição comemorativa e ampliada de 1822 (Globo Livros). Em estilo de grande reportagem, o texto mostra como foi o processo de independência por meio de personagens famosos e outros pouco conhecidos, como o escocês Thomas Alexander Cochrane, o Lorde Cochrane. A nova edição de 1822 inclui um ensaio da historiadora Heloisa Murgel Starling sobre os desafios para a consolidação da democracia no País.

Protagonismo feminino

Independência do Brasil – As mulheres que estavam lá (Bazar do Tempo) reúne textos sobre mulheres que se destacaram em sua época, como a Imperatriz Leopoldina (esposa de Dom Pedro I); Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, única mulher a participar de maneira efetiva da Inconfidência Mineira; e Maria Felipa de Oliveira, mulher negra que liderou um grupo de 40 mulheres baianas para guardar as praias dos soldados da Coroa portuguesa, entre 1822 e 1823. A organização é da dupla formada por Heloisa Starling, professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Antonia Pellegrino, roteirista.

Na avaliação de Heloisa, as mulheres que assumiram protagonismo no mundo público e no político no tempo da Independência constituíram a matriz de uma luta constante para construir e consolidar esse protagonismo ao longo da história. “Para as mulheres brasileiras, entre todas as fronteiras, a da política foi a mais difícil de transpor; e continua assim até hoje”, diz Heloisa, que destaca outras lutas femininas, como o direito ao voto e a representação política.

“Para as mulheres brasileiras, entre todas as fronteiras, a da política foi a mais difícil de transpor; e continua assim até hoje.” Heloisa Starling, professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Redescobrimento do Brasil

A Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) prepara um Dicionário da Independência. Com mais de mil páginas, a obra contempla 743 verbetes temáticos e biográficos. Segundo os organizadores, professores da Universidade de São Paulo (USP), houve a preocupação em apresentar não apenas eventos e personagens conhecidos, mas também figuras, movimentos sociais e situações que as pesquisas mais recentes descobriram ou revisitaram.

“Houve a possibilidade de discutir a atuação de mulheres, populações indígenas, de homens livres, libertos ou escravizados que demonstraram o envolvimento de inúmeros segmentos sociais nas lutas políticas e na construção de projetos de Estado e de Nação”, explica Cecília Helena de Salles Oliveira, uma das organizadoras da obra. “O Dicionário da Independência expõe informações detalhadas, interpretações atualizadas e abre inúmeras outras vertentes de investigação para o futuro”, completa o outro organizador, João Paulo Pimenta.

Os lançamentos mostram, além disso, como o processo de independência não foi um ato isolado em 7 de setembro de 1822, muito menos pacífico. “Lutava-se por ‘liberdade’, palavra que soava bem aos ouvidos dos cativos, dos comerciantes interessados em fazer negócio direto com a Europa e dos senhores de terra endividados, entre outros”, esclarece a historiadora Mary Del Priore, autora do recém–publicado A Viajante Inglesa (Editora Vestígio).

O livro conta a saga de dois ingleses, Maria Graham e Thomas Cochrane. Personagens verídicos que estavam no Brasil na época dos acontecimentos; ela como funcionária do Palácio de São Cristóvão, onde presenciou o sofrimento da Imperatriz Leopoldina, e ele, um militar da Marinha Britânica. “Não são documentos, mas vozes que presenciaram os fatos ao vivo e em cores”, observa Mary. Ela destaca aspectos relevantes, como a presença britânica no cotidiano brasileiro por meio do chá, do presunto, dos chapéus e das roupas finas de lã.

Abalos monetários

As crises políticas derivadas das econômicas, fenômeno comum em diversos países até hoje, são abordadas em Adeus, senhor Portugal (Companhia das Letras). Entre os fatos que incentivaram a autonomia brasileira está a crise financeira no período do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815-1822). A falta de receitas para cobrir as despesas do Reino Unido gerou um grande déficit fiscal, que acelerou a crise política.

“Com esse cobertor curto, ou seja, com a falta de recursos, por causa da crise fiscal, deputados brasileiros e portugueses começaram a se desentender nas Cortes. Esses desentendimentos, em geral, tinham a ver com questões de arrecadação de impostos e com disputas sobre como usar esses impostos”, conta o autor, escritor e jornalista Rafael Cariello.

Segundo Cariello, um caso emblemático foi a determinação de que os funcionários públicos do Rio de Janeiro – aparato estatal montado por Dom João VI – perdessem os seus empregos imediatamente, no fim de 1821, já que agora a administração do Reino Unido seria feita em Lisboa. “Isso gerou enorme revolta, não só entre os burocratas fluminenses, mas também nas províncias vizinhas de São Paulo e Minas Gerais, ligadas economicamente à Corte fluminense.”

O episódio também é retratado em A outra independência: Pernambuco, 1817-1824 (Editora Todavia), em que o historiador Evaldo Cabral de Mello aponta o pânico que se instaurou entre os funcionários públicos do Rio de Janeiro com a determinação das Cortes Extraordinárias (o parlamento português) de centralizar todo o aparato em Lisboa. Mello detalha que a perda da autonomia política e financeira provocada pelo desmanche da máquina administrativa seria enorme, e isso ameaçava tanto a burocracia de governo como os grandes comerciantes fluminenses.

“Ademais, o aparato estatal alojado no Rio de Janeiro gastava a rodo, mas quem pagava as contas eram as províncias”, afirma Mello. Ele aborda o processo da Independência a partir de Pernambuco, que se destacou pela resistência contra o centralismo da corte do Rio de Janeiro e seu projeto de unificação nacional. Em busca de autonomia, mas sem pretensões separatistas, a província abrigou uma intensa movimentação política entre 1817 e 1824.

O sequestro da independência (Companhia das Letras), traz uma reflexão sobre como fatos e imagens históricas, como a tela de Pedro Américo que retrata o grito da Independência dado por Dom Pedro, reforçam o personalismo dos governantes em detrimento do papel exercido pelo povo nos mais diversos momentos históricos do País. A antropóloga e historiadora Lilia M. Schwarcz, uma das autoras, define: “É o protagonismo do imperador em detrimento do protagonismo da própria nação”.

Marcus Lopes Paula Seco
Marcus Lopes Paula Seco