Entender o presente

01 de setembro de 2021

Nascido e criado em Belo Horizonte, filho de imigrantes judeus, Simon Schwartzman lança Falso mineiro (Intrínseca). O autor faz parte da geração de cientistas sociais brasileiros que se formou nos anos 1960, conhecida pela modernização das percepções deste ramo no País. Suas memórias percorrem a história das políticas públicas adotadas no Brasil e dão base para discutir o momento atual. Com exclusividade, a PB reproduz um capítulo do livro.

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Em 1985 o governo brasileiro assinou um amplo acordo com o Banco Mundial para o financiamento do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), que reorganizou o sistema de pesquisa científica e tecnológica no país. Na primeira fase do programa (de 1984 a 1991), foram investidos cerca de 170 milhões de dólares, entre recursos do banco e a contrapartida brasileira. Na segunda fase (entre 1991 e 1994), foram 300 milhões de dólares. Na terceira (de 1997 a 2002), 360 milhões de dólares.

Nas negociações entre a primeira e a segunda fase, o banco impôs, entre outras condições, que o Brasil tornasse explícita sua política para o setor, para que os recursos não se dispersassem em um sem-número de projetos desconexos. Fui convidado, certamente indicado por José Goldemberg, então à frente da Secretaria de Ciência e Tecnologia (que substituiu por pouco tempo o ministério do setor), para coordenar a elaboração do documento com a definição dessa política. Para isso foi assinado um convênio entre a Secretaria e a Escola de Administração de Empresas (Eaesp-FGV), em São Paulo, com a qual eu estava associado desde minha ida para a USP, e que ficou responsável pela administração dos recursos para pagar os trabalhos que contratamos.

Para cumprir a tarefa, formei uma equipe com Eduardo Moacyr Krieger, professor da USP na área de fisiologia e então vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências; Fernando Galembeck, professor de química da Unicamp; Carlos Osmar Bertero, professor de administração da Eaesp; e José Roberto Ferro, também da Eaesp, na posição de coordenador administrativo. No final, resumimos nossas recomendações e conclusões, junto com os trabalhos encomendados a cerca de 30 autores, em três volumes editados pela FGV: um em inglês, com a contribuição de alguns especialistas internacionais, dando o contexto global da questão; outro sobre a capacidade brasileira nas diversas áreas de ciência e tecnologia; e um terceiro, sobre mercado de trabalho, política industrial e instituições de apoio à ciência e tecnologia no Brasil.

Fiquei com a responsabilidade de redigir o documento de síntese, que foi revisto pelos outros coordenadores. Nossa principal conclusão era a de que havia uma clara necessidade de sair do modelo anterior de desenvolvimento científico e tecnológico e partir para um equacionamento inteiramente novo, mais adequado às realidades presentes e futuras do país. “A nova política”, dizíamos, “deve evitar tanto os excessos do laissez-faire quanto os do planejamento centralizado. Uma política liberal convencional de desenvolvimento científico e tecnológico não produzirá capacitação na escala e na qualidade necessárias. Projetos tecnológicos de grande porte, altamente sofisticados e concentrados, não terão condições de gerar impactos sufi- cientemente amplos no sistema educacional e industrial. Tentativas de planejar e coordenar centralizadamente todos os campos da ciência e da tecnologia correm o risco de expandir burocracias ineficientes e sufocar a iniciativa e a criatividade dos pesquisadores.”

Ficha técnica:
Falso mineiro – memórias da política, ciência, educação e sociedade
Simon Schwartzman
Intrínseca
400 páginas

E concluíamos: “A nova política de C&T deve implementar tarefas aparentemente contraditórias: estimular a liberdade, a iniciativa e a criatividade dos pesquisadores e, ao mesmo tempo, estabelecer um forte vínculo entre o que eles fazem e as necessidades da economia, do sistema educacional e da sociedade como um todo. Deve também tornar a ciência e a tecnologia brasileira verdadeiramente internacionais e fortalecer a capacidade educacional e de C&T interna ao país.” Um dos convidados internacionais da equipe foi Michael Gibbons, que havia coordenado a produção do livro The New Production of Knowledg, sobre o novo modo de produção científica, do qual eu havia participado. Nas discussões que tivemos, ele insistiu que devíamos abandonar de vez a ideia de uma comunidade científica autônoma e independente, do “modo 1”, e passarmos resolutamente para o “modo 2”, o que nos pareceu demasiado radical. Para levar à frente essa proposta, propúnhamos que o Ministério da Educação criasse um grupo de trabalho de alto nível para analisar as conclusões deste e de outros estudos em andamento a fim de propor medidas concretas, inclusive com nova legislação, para uma reorganização profunda do sistema de C&T no país — o que nunca chegou a ser feito.

Além do que aprendemos sobre ciência e tecnologia, esse trabalho trouxe duas lições de ordem mais geral: uma sobre o governo e outra sobre o Banco Mundial. É fácil para o governo contratar estudos e pesquisas, mas é muito difícil usar seus resultados para desenvolver políticas efetivas. A razão é que quase sempre acabam prevalecendo as prioridades e as circunstâncias do momento e a preocupação em não desagradar a setores capazes de protestar se forem contrariados. Pude ver isso diretamente em três ocasiões: em 1985, com a Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior; em 1985 e 1986, com esse estudo sobre políticas de ciência e tecnologia; e em 2019, quando o Ministério da Educação, por iniciativa na qual estive envolvido, contratou a OCDE para rever o sistema de avaliação da educação superior no Brasil.

Para que não seja assim, parece ser necessário que a agência ou o ministério contem com uma estrutura técnica e profissional muito bem constituída e com poder de decisão — e não basta uma, tem de ter as duas coisas. Talvez apenas a área econômica no Brasil tenha conseguido, em algum momento, aproximar-se mais dessas condições. O Banco Mundial não é uma simples agência de financiamento, seu papel é apoiar projetos relevantes para os países do ponto de vista econômico e social. Isso é definido na fase de negociação dos empréstimos e fixado, em cada caso, por acordos assinados entre o banco e os governos que recebem os recursos, geralmente na forma de empréstimos subsidiados e de longo prazo. Se o governo não estiver cumprindo o combinado, os acordos devem ser interrompidos.

Mas, na prática, o que pude observar é que o banco, embora reúna excelentes técnicos, capazes de desenvolver estudos de alta qualidade e estabelecer acordos de financiamento bastante elaborados, tem baixa capacidade de fazer cumprir o combinado quando tais acordos são assinados. No caso, a continuação do apoio à área de ciência e tecnologia foi condicionada à realização de propostas de políticas mais adequadas para o setor. As propostas foram feitas, o empréstimo foi concedido. O governo desconsiderou as recomendações e tudo ficou por isso mesmo.

Simon Schwartzman Paula Seco
Simon Schwartzman Paula Seco