Nos bastidores da notícia

15 de dezembro de 2021

“Um homem que não tem coragem não merece viver.” Começa assim, com uma frase do biografado, o perfil de Roberto Pisani Marinho, escrito por Eugênio Bucci. Livro difícil de escrever, não só pela grandiosidade do personagem, mas em razão do País em que vivemos. Um País complicado e fascinante. Um sujeito complicado e fascinante, absolutamente controvertido, admirado e odiado: Roberto Marinho.

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Poucos brasileiros terão tido tanta notoriedade quanto esse carioca, quase fluminense, nascido no início do século 20 (em 1904) e morto no início do século 21 (em 2003). Um período de mudanças brutais e de modernização acelerada — e, em vários períodos, forçada. Na segunda metade do século 20, Marinho parecia sempre ter estado presente, paletó e gravata, bigode e calvície, um homem já na maturidade, aliado dos militares, fundador de uma das maiores empresas de comunicação do planeta, uma espécie de cidadão Kane à moda brasileira. Tanto se ouvia falar dele, que é natural achar que sabíamos quem foi esse personagem. Engano. A leitura das 340 páginas de Roberto Marinho Um jornalista e seu boneco imaginário, integrante da coleção Perfis Brasileiros, da Cia das Letras, desvenda, ao menos em parte, a complexidade da figura do “homem de negócios que passaria a vida inteira preferindo ser qualificado como jornalista”.

A história do filho começa pela do pai, Irineu. Corrigindo: começa por um crime, uma agressão, uma “sova no Largo da Carioca”, praticada pelo jovem e violento Roberto contra um desafeto do pai. Irineu, de origem simples, era um selfmade man que morava em Niterói e pegava a barca todos os dias para trabalhar (como, anos depois, faria outro personagem importante da história da comunicação brasileira, Senor Abravanel — só que Silvio morava no Rio e trabalhava em Niterói). Enfim, nascido para o jornalismo, trabalhou como repórter, editor e, finalmente, criou um jornal e enriqueceu. Perdeu o jornal, traído pelos amigos (inclusive aquele que o filho espancou). Fundou outro jornal e morreu, um mês depois (em 1925). O jornal se chamava O Globo (o segundo nome mais votado em uma enquete entre os leitores).

Roberto era boêmio e briguento, um “rapazote invocado”. Alguns anos após a morte do pai, em 1931, o herdeiro de 26 anos assume a chefia do jornal. As vicissitudes e aventuras do jovem Marinho dariam vários livros (e ocupam parte deste), mas o fato é que o bon vivant entendia de negócios, e seu jornal cresce e cresce.

Roberto era boêmio e briguento, um “rapazote invocado”. Alguns anos após a morte do pai, em 1931, o herdeiro de 26 anos assumiu a chefia do jornal. O Brasil era governado por Vargas — e O Globo cresceu entre golpes, ditadura, golpes, democracia. Os altos e baixos e aventuras protagonizadas pelo jovem Marinho dariam vários livros (e ocupam parte deste), mas o fato é que o bon vivant entendia de negócios, e seu jornal cresce e cresce. Ele deixa sua fase pugilista para trás e vira um articulador discreto e eficiente. Não tinha diploma universitário, mas gostava que o tratassem por doutor. Começa aí a carreira ascendente do autodidata que, ao fim da vida e de sete décadas de atuação no mundo da comunicação e do entretenimento, era o 49º homem mais rico do planeta, criador de um grupo que esteve entre os maiores do mundo.

Nos anos 30, O Globo tornou-se um dos grandes jornais brasileiros — e os negócios floresceram (inclusive na área imobiliária), e se tornaram multimidiáticos, com a expansão para o universo radiofônico e, mais tarde, para a televisão (a Globo nasceu em 1965, quando o empresário já era um homem de mais de 60 anos).

O negócio da televisão era complicado e arriscado — mas era um grande negócio, e Marinho topou o risco. Sua capacidade em fazer amigos (e amigos certos, na hora certa) o ajudou de novo. A Rede Globo explodiu, apesar de várias crises, alavancada pela necessidade de a ditadura militar alcançar os “90 milhões em ação”. Marinho e os militares foram aliados desde a primeira hora (embora Marinho tenha abrigado vários jornalistas adversários do regime). O padrão Globo de qualidade se juntou às antenas da Embratel. O Brasil foi para a frente — e a Globo foi junto.

A Rede Globo explodiu, apesar de várias crises, alavancada pela necessidade de a ditadura militar alcançar os “90 milhões em ação”. Marinho e os militares foram aliados desde a primeira hora. O padrão Globo de qualidade se juntou às antenas da Embratel. O Brasil foi para a frente — e a Globo foi junto.

Até por causa de outra característica de Marinho: sua capacidade de se cercar de gente brilhante. Dois nomes, entre muitos, se destacaram nessa história: Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Os dois ajudaram a Globo a ser a Globo. Eles e o chefe. Sempre ele.
O empresário foi fiel aos militares até o final da ditadura — e nunca admitiu ter feito algo errado ao apoiar o Golpe de 64. Envolveu-se em algumas das maiores polêmicas da redemocratização (entre as quais, a história da edição do debate entre Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, nas eleições de 1989). Manteve-se no centro do poder até o fim. Em seu velório, estavam o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dois ex-presidentes, José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, seis ministros e quatro governadores. Lula decretou luto oficial de três dias.

Marco Chiaretti Companhia das Letras Paula Seco
Marco Chiaretti Companhia das Letras Paula Seco