Caipirinha: do remédio ao drinque

11 de agosto de 2023

Ainda está muito fresca na nossa memória a gravidade da covid-19, que se alastrou pelo mundo e deixou milhares de mortos. Em 1918, foi aquela conhecida como gripe espanhola que matou, aterrorizou e mexeu com o planeta.

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No entanto, em meio a tanta desgraça, a pandemia de mais de cem anos atrás deixou um legado, uma criação brasileira que se espalharia pelo mundo: a famosa caipirinha, marca da coquetelaria nacional. A história do drinque não é precisamente documentada. Não dá para saber exatamente quem criou, nem quando inventou, tampouco onde se bebeu pela primeira vez. Mas a ligação com a gripe é quase unanimidade entre os pesquisadores. 

“É a versão mais popular, mais aceita tanto pelos especialistas quanto pelos historiadores”, afirma o cachacier e publicitário Mauricio Maia, um dos idealizadores do Grupo de Estudos e Degustação de Cachaça (Gedec). “Era muito comum, e até hoje é na medicina popular, a ideia de alho com limão e mel para os sintomas da gripe”, explica. Acredita-se que a bebida tenha nascido na região de Piracicaba, onde até hoje há grande produção do destilado de cana. “Na época da gripe espanhola, passou-se a tomar um shot de cachaça com limão, mel e alho”, comenta Maia. 

Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o tecnólogo em Gastronomia Rodrigo Libbos vê ligação com as populares garrafadas, os fitoterápicos da cultura popular, nessa origem. “A cachaça era utilizada na mistura de uma infinidade de itens, mesclada a plantas medicinais, para curar doenças e aquecer o corpo”, afirma. “Depois da pandemia do víruz influenza, alguém mais esperto tirou o alho e botou o gelo. O mel se substituiu por açúcar”, narra Maia. Da adaptação marota, o que nasceu como remédio para o corpo virou refresco para a alma. Uma outra versão menos conhecida relata que a bebida teria nascido no Porto de Santos. Segundo essa narração, marinheiros que chegavam, após longos períodos em alto-mar, carentes de vitamina C paravam nos botecos da orla e tomavam a cachaça com limão — e, aí, alguns começaram a adicionar açúcar.

Seja em Santos, seja em Piracicaba, a ideia de misturas alcoólicas usadas como medicamento popular não era uma novidade. “Antes do surgimento da caipirinha, já era comum, no mundo, misturar um destilado com limão como remédio”, pontua Libbos. “Acrescentar água, mel ou açúcar também era comum durante a era das navegações.” O gelo veio depois: à época, era muito difícil o acesso ao estado sólido da água cristalizada, então, o ingrediente não estava popularizado. Libbos conta que a bebida acabou pegando, primeiro, no interior paulista e, mais tarde, ganhou projeção nacional. “Foi impulsionada por meio de artistas a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, sendo levada aos Estados vizinhos, o Rio de Janeiro e Minas Gerais”, diz. “Depois, foi ganhando o Brasil e o mundo.”

Em 1995, a caipirinha ganhou a chancela internacional. O drinque entrou para a seleta lista dos coquetéis clássicos da International Bartending Association (IBA). Maia ressalta que é necessário reconhecer o papel de uma pessoa nesse processo: o bartender Derivan Ferreira de Souza (1955–2023), mais conhecido como Mestre Derivan. “Ele lutou com muita força e convicção para que a caipirinha fosse incluída no rol”, ressalta o cachacier.

Equilibrado e “perfeito”

Oficialmente, a caipirinha precisa ser preparada sempre com cachaça — destilado de aguardente de cana-de-açúcar produzido no Brasil — e limão-taiti, que, na verdade, é um tipo de lima. Embora variações com vodca, saquê e um amplo arsenal de frutas sejam comuns hoje em dia, especialistas lembram que elas não podem ser chamadas de caipirinha. “Na atualidade, qualquer fruta serve para uma nova versão da bebida, assim como o uso de vodca para a caipirosca ou até o saquê para a saquerinha”, lembra o tecnólogo Libbos. 

Segundo Maia, o sucesso se explica pela combinação. “O drinque, em si, é sensorialmente perfeito e equilibrado. Traz a potência alcoólica da cachaça, o amargor da acidez do limão, o dulçor do açúcar e a refrescância do gelo”, define. “Isso faz com que se tenha sucesso. É fácil, agradável de se tomar e até perigoso: quando se dá conta, já bebeu cinco doses e sai ‘trançando as pernas’”, brinca — e ainda acrescenta: “Não é à toa que o gringo chega ao Brasil e já quer tomar caipirinha”. 

Libbos ressalta outra explicação para o drinque ter se tornado tão popular: a facilidade dos ingredientes, comuns em todo o País. “Nas primeiras versões, outras limas ou limões eram utilizados, como o cravo, o galego e o rosa”, conta. O taiti acabou ganhando a preferência após a sua popularização no Brasil, a partir dos anos 1970, principalmente por causa da acidez e da praticamente ausência de sementes, conforme explica o professor. “O coquetel é a cara do Brasil e de suas temperaturas. Gelado e refrescante e com seus três ingredientes da versão tradicional de custo acessível: cachaça é o destilado mais produzido no País, ao passo que o açúcar foi um dos produtos responsáveis pela existência e pelo financiamento do Brasil, enquanto o limão e todos os cítricos se adaptaram muito bem por estas terras”, completa. A combinação perfeita para um brinde: saúde! 

Edison Veiga Débora Faria
Edison Veiga Débora Faria