O filtro de barro

18 de abril de 2022

Um gole de água assim tem gosto de Brasil. É fresca e, para muitos, traz um indefectível saborzinho que remete à argila. Os tradicionais filtros de barro são uma invenção de cerca de 100 anos atrás.

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Por um lado, trata-se de um aprimoramento das moringas, já utilizadas desde tempos pré-colombianos por indígenas para armazenar água, conservando-a em temperatura agradável. Por outro, graças ao processo de filtragem mecânica, também era um alívio para um momento de precário saneamento básico.

Simples, mas eficiente, a solução acabou sobrevivendo por gerações. E, mesmo com a melhoria dos processos de tratamento de água e com o advento de filtros mais modernos, ainda resiste em muitas casas.

“Foi uma invenção brasileira, embora outros povos já usassem potes de cerâmica para guardar água e conservá-la gelada e tal”, contextualiza o desenhista industrial Marcelo Oliveira, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Era uma época em que havia grande incidência de várias doenças, como cólera, então o filtro veio para isso.”

Segundo trabalho acadêmico realizado pelo economista Julio Cesar Bellingieri, embora almanaques antigos registrem a produção de tais artefatos por outras pequenas empresas e artesãos da época, o primeiro a fazer o filtro de barro de forma industrial foi o imigrante italiano Victor Lamparelli, na cidade de Jaboticabal, no interior paulista. E o batizou como filtro São João, nome que acabaria se tornando quase um sinônimo do equipamento.

“No mesmo ano de 1920, iniciou a produção e comercialização daquilo que chamou de ‘filtro reto’: uma talha de barro composta por duas partes, sendo que, entre elas, se colocava um ‘disco’ poroso, feito de uma mistura de barro, carvão e outros componentes, que tinha a função de filtrar a água”, escreveu o economista. “Esse ‘disco’ era colado entre as partes da talha com uma mistura de breu e cera, para que a água não vazasse.” A torneira era de chumbo.

O primeiro a fazer o filtro de barro de forma industrial foi o imigrante italiano Victor Lamparelli, na cidade de Jaboticabal, no interior paulista. E o batizou como filtro São João, nome que acabaria se tornando quase um sinônimo do equipamento.

Quatro anos mais tarde, o ceramista desenvolveu um produto chamado por ele de “moringa da lavoura”: um filtro de barro que era todo revestido de bambu e vime, protegendo-o contra quebra. “Era usado para acondicionar e transportar água fresca, utilizado pelos trabalhadores nos campos de café”, afirmou Bellingieri, em sua dissertação.

A partir de registros em anúncios encontrados em jornais da região de Jaboticabal, o pesquisador Bellingieri pontuou que a invenção do filtro São João ocorreu entre 1926 e 1928, a partir de uma evolução desses modelos, anteriormente desenvolvidos por Lamparelli. “Depois de algum tempo de estudo e algumas experiências, Victor conseguiu desenvolver uma vela capaz de filtrar a água com muito mais eficiência do que no processo do ‘filtro reto’: a vela tratava-se de um cilindro fechado, composto por uma mistura de caulim, carvão e outras substâncias, parafusado com duas arruelas de borracha a uma chapa de ferro cromada, a qual, por sua vez, era pregada com cimento entre as duas partes do filtro. A vela poderia ser desparafusada da chapa, para limpezas regulares. O filtro levava uma torneira de metal cromado, pregada com breu e cera”, descreveu ele.

O professor Oliveira ressalta que a solução acabou se revelando muito eficiente, já que “a capacidade de filtragem chega a 1 mícron, o que retém até bactérias”. “Era um momento em que mais gente estava trocando o campo pela cidade, e havia carência de canalização de esgotos, com profusão de endemias”, contextualiza o desenhista industrial.

Os filtros São João e concorrentes reinaram em absoluto na cozinha brasileira até os anos 1990, quando diversas marcas passaram a comercializar outros tipos de estruturas filtrantes. Os de barro ainda resistem, principalmente em casas mais simples do interior, mas são resgatados por aqueles que sentem nostalgia.

Aos poucos, o filtro de barro se tornou parte fundamental de qualquer cozinha. “As construções ganharam até o cantinho do filtro, que era um suporte, para deixá-lo no lugar próprio. E muitas pessoas faziam até uns ‘casaquinhos’ de tricô para enfeitar o filtro”, pontua Oliveira.

Os filtros São João e concorrentes reinaram em absoluto na cozinha brasileira até os anos 1990, quando diversas marcas passaram a comercializar outros tipos de estruturas filtrantes. Os de barro ainda resistem, principalmente em casas mais simples do interior, mas também são resgatados por aqueles que sentem nostalgia daquele frescor genuíno ou que buscam um aspecto vintage para suas casas. “Hoje, incorporou muitos elementos de plástico. A torneirinha, a base, partes da vela e, em alguns casos, até a parte superior do reservatório…”, ressalta Oliveira. “A cerâmica de baixo [que retém a água filtrada], essa não dá para trocar: porque é o material que faz toda a mágica.”

Se há mudanças para baratear, também há aquelas que dão um toque artístico ao produto. “Hoje tem filtro de tudo quanto é tipo, tem aqueles em que a parte de cima é de vidro, tem inteiro de vidro e até artesãos que fazem alguns bem bacanas”, comenta Beto Cocenza, especialista em Marketing e curador do BoomSPDesign: Fórum Internacional de Arquitetura, Design e Arte. Ele cita o caso de artesãs do Vale do Jequitinhonha, que desenvolveram um filtro de água em forma de cacto.

Edison Veiga Paula Seco
Edison Veiga Paula Seco