São anúncios na TV, faixas na entrada de lojas populares, banners em sites e publicidade nas redes sociais. O celular está caro? Parcele-o em 24 vezes sem juros. A máquina de lavar quebrou? Só comprar uma nova em 12 vezes. Aquela viagem dos sonhos? Realize-a pagando em prestações!
Se a lógica do crédito fácil é uma invenção do “sonho americano” ainda no boom industrial do fim do século 19, foi no Brasil que ele encontrou solo fértil na gastança associada à falta do hábito de poupar — e, claro, no problema crônico que gera um círculo vicioso: ganha-se mal, então, para conseguir o tão desejado bem de consumo, acaba sendo preciso se endividar.
Especialista em economia comportamental e professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a economista Paula Sauer explica que a maneira como gastamos o dinheiro hoje tem raízes na Revolução Industrial. “Para que os lucros das empresas crescessem, era necessário aumentar a produção em massa e, sucessivamente, a demanda pelos produtos”, conta. Dessa forma, o prazo para comprar a crédito foi aumentando proporcionalmente às possibilidades e consumo. Em 1870, fabricantes norte-americanos de móveis instituíram o sistema. “O crédito permitiu que as pessoas diminuíssem o peso de algumas dificuldades resultantes das mudanças no estilo de vida ou na ordem social”, analisa a professora.
Paula destaca que, no início, utilizar esse sistema não era visto com bons olhos. Aquele que contraía a dívida era visto como “um fracassado”. Nos Estados Unidos, o cenário mudou a partir da década de 1920. “As pessoas economizavam menos e compravam mais a crédito. E pedir emprestado deixou de ser um indício de pobreza”, relata. O marketing se encarregou de fazer o resto, popularizando a mentalidade do “compre agora, pague depois”.
Essa situação demorou um pouco até cair no gosto dos brasileiros. Afinal, a lógica dependia de uma industrialização local mais forte e de uma urbanização mais intensa. “Até os anos 1950, as compras eram realizadas, em sua maioria, à vista”, contextualiza o contabilista, matemático e advogado Reginaldo Pereira de Araújo, professor na Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília. “A modalidade do parcelamento de compras passou a ser comum no Brasil na década de 1960, com a adoção do sistema de crédito.” Ele explica que essa acessibilidade do crédito ao cidadão veio ao mesmo tempo em que o comércio se solidificava. “A maioria das lojas passou a oferecer a venda parcelada como forma de facilitar o acesso dos consumidores a bens de valores mais elevados, como veículos, eletrodomésticos, máquinas e equipamentos”, comenta.
A justificativa era básica: não fossem as suaves prestações, os consumidores brasileiros não teriam como adquirir os produtos. “Mas isso também decorreu da falta de cultura de poupar, hábito esse mais comum entre cidadãos de países que oferecem educação financeira para as crianças desde a mais tenra idade”, aponta o professor. Enxergando aí uma lucrativa tendência, grandes lojas instituíram o famoso crediário. “O que lhes conferia vantagem competitiva, porque essas empresas tinham estrutura para operacionalizar todo o processo de venda parcelada, inclusive com departamento interno de cobrança”, diz Araújo. Ainda eram tempos nos quais o crédito não era automático. “A concessão era feita pelos lojistas, principalmente dos estabelecimentos que vendiam móveis e eletrodomésticos”, ressalta Paula, da ESPM. “Era demorada e trabalhosa. O consumidor precisava preencher um longo questionário, que, depois, era analisado.”
A professora lembra que o fenômeno do parcelamento se tornou de praxe principalmente no comportamento dos consumidores de baixa renda. Essa obtenção do crediário diretamente na loja era a maneira que essa população, que não tinha acesso a bancos, encontrou para se inserir na sociedade dos bens de consumo. Nos anos 1960, foi a vez do consórcio surgir no Brasil como mais uma forma de compra a prazo. “A iniciativa foi do Banco Central do Brasil, com o intuito de impulsionar o desenvolvimento econômico. É uma modalidade que estimula o consumo, em especial dos bens duráveis”, afirma Araújo, do Mackenzie.
Paula explica que isso se deu porque ocorreu no momento em o País fortalecia a indústria automobilística. “Na época, a oferta de crédito ao consumidor era escassa, o que dificultava a compra do carro por boa parte da população. A ideia inicial do consórcio no Brasil, e que se perpetua até hoje, era reunir pessoas com o mesmo objetivo e adquirir um bem”, ressalta. A ideia foi posta em prática pela primeira vez por funcionários do Banco do Brasil, que se uniram para conseguir comprar carros.
Mesmo em tempos atuais, com inflação relativamente sob controle e economia, de certa forma, estável — principalmente após a implementação do Plano Real, em 1994 —, as compras parceladas seguem em alta. Segundo Araújo, isso ocorre porque faz parte do hábito do brasileiro, tornou-se uma questão cultural. “É uma forma de facilitar a aquisição de bens de valor mais elevado. Lojas oferecem opções de parcelamento sem juros, o que se torna muito atrativo para os consumidores”, comenta.
No entanto, é preciso tomar cuidado com pegadinhas — e com a tentação do consumismo desenfreado e irresponsável. “A falta de uma cultura de poupar, agravada pela não utilização de planejamento financeiro, faz com que o brasileiro, muitas vezes, caia em armadilhas de juros altos, o que inviabiliza o desenvolvimento econômico pessoal”, alerta o professor. Já segundo Paula, o mecanismo das compras a prazo é um ciclo que se retroalimenta. “O consumidor é estimulado a comprar. A mídia traz um senso de urgência, e o indivíduo entra em um viés de presente, em que necessita do prazer, da recompensa imediata. O uso do crédito e o parcelamento das compras é a solução”, argumenta a especialista. “Ao parcelar, o indivíduo está consumindo a renda futura. E para continuar comprando em um cenário no qual a renda se manteve estável — ou, pior, foi corroída pela inflação —, somente comprando novamente parcelado”, acrescenta.
Para a FecomercioSP, restringir ou eliminar o parcelamento sem juros pode gerar impactos negativos à economia, reduzindo o consumo, afetando a sustentabilidade de inúmeros negócios — em especial as micro e pequenas empresas — e aumentando ainda mais a inadimplência entre os consumidores.
Diante da medida que vem sendo discutida para lidar com as elevadas taxas do rotativo do cartão de crédito, a Entidade é contrária ao fim do parcelamento sem juros. Com o objetivo de mobilizar o Poder Público, a Federação enviou ofício, recentemente, para Fernando Haddad, ministro da Fazenda, e para Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central do Brasil, com sugestões de ações para reduzir os elevados juros atrelados ao crédito rotativo.
Segundo a Federação, o crédito, aliado ao emprego e à renda, é pilar essencial na determinação dos padrões de consumo da população. É por meio da disponibilização de uma ampla gama de métodos de pagamento que as pessoas têm a capacidade de acessar bens e serviços, seja ao aproveitar descontos em transações à vista, seja ao optar por parcelar os pagamentos sem a incidência de juros.
As transações via cartões de crédito, no Brasil, movimentaram R$ 2,1 trilhões no ano passado, registrando aumento de 29,4% em relação a 2021, segundo dados da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs). O parcelamento sem juros representa cerca de metade das operações realizadas em 2022.