Símbolo do tradicional e suculento churrasco brasileiro, é fato que há controvérsias sobre o surgimento da picanha no País. No entanto, é indiscutível que a peça se tornou a preferida no paladar de qualquer pessoa que aprecie uma boa carne assada.
São inúmeras as versões para explicar a sua origem. “É uma carne com muitas lendas em torno dela. Mas uma coisa é certa: é brasileira”, afirma Arnaldo Lorençato, jornalista e professor de Literatura e Gastronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de editor da revista Veja São Paulo. Na capital paulista, são muitas as pessoas que reivindicam a criação do corte. Teria nascido nos anos 1960, ao ser separado da alcatra e do coxão duro”, ressalta.
“Não é que ninguém mais faça o corte equivalente à picanha, mas ninguém assa na churrasqueira como nós. Então, a picanha se tornou mundialmente famosa por causa do Brasil”, explica o escritor e jornalista de gastronomia Rafael Tonon, autor do livro As Revoluções da comida (Todavia, 2021) e coordenador do mestrado em Jornalismo Gastronômico e Comunicação no Basque Culinary Center, fundação culinária localizada na região basca da Espanha. Tonon acrescenta que o corte “tipo exportação” se disseminou pelo planeta juntamente com “os rodízios brasileiros que ganharam o mundo saindo do País”.
Também professor na Universidade Mackenzie, o gastrólogo Daniel Marcus Martins ressalta que a origem do corte “divide opiniões”. Ele lembra que o fundador da churrascaria paulistana Dinho’s — originalmente Dinho’s Place —, Fuad Zegaib (1932–2022), “dizia ser o primeiro a preparar o corte na grelha”. “Ele teria servido o prato pela primeira vez em 1970, ideia que trouxe de uma viagem ao Rio Grande do Sul”, comenta Martins.
Contudo, acredita-se que a comercialização da peça teria começado anos antes, graças ao açougueiro húngaro Laszlo Wessel (1916–1997). “Ele teria sido o primeiro a oferecê-la em seu açougue, localizado no bairro do Bixiga, em São Paulo, aberto em 1957”, pontua. Filho de Laszlo, o açougueiro István Wessel confirma a história, mas com modéstia. “Quem inventou com precisão a picanha e quando foi eu não sei dizer”, afirma ele. “O que sei é por declaração feita pelo Belarmino Iglesias [1931–2017], pai do atual dono do Rubaiyat [rede de restaurantes]. A primeira pessoa que ele viu separar a picanha foi o meu pai, mais ou menos em 1959.”
Segundo István Wessel, isso ocorreu meio que por acaso. Lazlo tinha muitos clientes imigrantes alemães, e eles costumavam pedir o corte Tafelspitz, prato típico da culinária austríaca muito semelhante à picanha. “Talvez o meu pai não seja a pessoa que tenha inventado o corte, mas foi a primeira a separá-lo da alcatra para vendâ-lo separadamente”, resume o açougueiro.
“Caiu no gosto porque é uma carne saborosa, muito entremeada de gordura. Mais do que a própria camada de gordura, é a gordura entremeada que faz a diferença”, afirma István Wessel. Tonon acrescenta um outro fator: é uma carne que não tem erro, qualquer churrasqueiro acerta. “É um corte muito saboroso, porque fica na parte do boi que se movimenta menos: a anca, então tem menos músculo e é mais macia”, define ele. “Uma maminha é mais difícil de preparar, pois exige mais técnica de fogo, por exemplo”, acrescenta.
Segundo o chef Carlos Gianotto, especializado em gastronomia pelo Centro Superior Mediterrâneo de Valência, na Espanha, e proprietário do restaurante Entre Tapas y Paellas, em São Bernardo do Campo, o segredo da picanha está na sua localização ao redor dos melhores cortes do boi, com gordura inconfundível, sabor intenso e maciez graças ao tempo de abate ser muito reduzido, “pois, antigamente, os animais eram mortos com mais de cinco anos”, explica.
E o nome? Bom, é aí que as dúvidas são ainda maiores. Muitos, como o gastrólogo Martins, alegam que a nomenclatura tenha vindo de uma vara utilizada para tocar o gado que cutucava o animal justamente no traseiro e era utilizada pelos colonizadores espanhóis que ocuparam a América do Sul — e pelos habitantes do Sul do Brasil. Então, era comum um funcionário gaúcho de uma churrascaria da capital paulista explicar aos clientes que o corte era da região do boi em que o bicho levava uma “picaña de agulhão” para andar mais rápido, ao ser manejado nos pastos. De acordo com Gianotto, há uma outra versão que conta que o nome surgiu quando um churrasqueiro argentino que trabalhava em um restaurante no centro de São Paulo batizou a carne a partir de uma derivação de piccata, um tipo de preparo da culinária italiana que utiliza carne de boi ou de frango.
Controvérsias à parte, fato é que o corte queridinho dos churrascos brasileiros é caro, pois raro. “Apenas 1% do boi é picanha”, lembra o açougueiro István Wessel. “Representa muito pouco por animal, apenas duas picanhas por boi”, complementa Tonon. Em geral, as peças mais cobiçadas são aquelas pequenas, de até 1,2 quilo. No exterior, tornou-se estrela das churrascarias que procuram imitar os rodízios brasileiros. Difícil encontrar apreciadores de carne que resistam.