Que atire o primeiro ladrilho aquele que foi criança no Brasil dos anos 1980 e nunca brincou em um quintal de piso de caquinhos. Seja na casa dos avós, na de tios, na de amigos ou na própria residência, esse tipo de acabamento estético era um verdadeiro hit popular. São várias as versões para o surgimento e a disseminação da moda. E todas convergem para uma empresa da região metropolitana de São Paulo, a Cerâmica São Caetano, que funcionou de 1913 a 1999.
“O Rino [Levi (1901-1964), importante arquiteto brasileiro] era amigo dos donos da cerâmica e, visitando a fábrica, viu uma enorme pilha de cacos, rejeitos da fabricação. Pedi para usar e daí é o que você sabe”, conta o arquiteto e urbanista Lucio Gomes Machado, professor na Universidade de São Paulo (USP).
Mas o próprio Machado lembra que há diversas narrativas. “Outra história é que os operários [da Cerâmica São Caetano] pediram para o dono o rejeito para pavimentar os quintais das suas casas”, relata. “Maldita ideia: o fato é que a moda pegou de tal maneira que a São Caetano fabricava cerâmica para quebrar e vender caco, mais caro que a inteira…”.
Pesquisador na USP e fundador do Ateliê Tanta, o arquiteto e urbanista Henrique de Carvalho acredita que os contornos mais dourados da história sejam “lenda urbana”. “Ela é simpática demais. Conheci gente bem antiga na construção civil e nunca vi ninguém me contando do tempo em que se comprava piso quebrado, e que ele custava mais caro porque era moda”, comenta. “Isso seria uma história muito boa para não ser contada pelos mais antigos. Houve a época, ainda por e-mail, em que essa versão viralizou, no início dos anos 2000, e acabou sendo tomada como verdade”, observa.
Carvalho deduz que o que poderia ter ocorrido é que “os funcionários levavam os descartes, e isso caiu no gosto dos consumidores”. “Talvez algumas pessoas tenham começado a coletar os descartes e transportar para vendê-los longe da fábrica, como forma de renda. E talvez a fábrica tenha passado a vender esses descartes como ponta de estoque, aumentando a arrecadação”, acrescenta.
Avô do arquiteto, o aposentado Luiz Antônio Bernardino, de 88 anos, trabalhou por nove anos na Cerâmica São Caetano. Ele se recorda que, sim, a empresa chegou a vender os caquinhos em caixas, por metro quadrado. “E era bem mais barato do que o piso inteiro. Eles faziam cacos dos pisos com defeito ou quebrados no processo de fabricação”, diz.
Ou seja: era uma maneira de aproveitar o que seria lixo. Bernardino não poupa elogios à firma, lembrando que ela costumava dar pisos — não os caquinhos, mas peças inteiras — para os funcionários que estivessem precisando. “A cerâmica era uma mãe para quem trabalhava lá”, comenta.
A ideia dos caquinhos foi se espalhando e virando uma opção. Não somente para aqueles que não podiam pagar por ladrilhos mais caros. “O aval de Rino Levi para esse piso fez com que ele fosse aplicado também nas casas de classe média”, argumenta Machado.
O arquiteto Carvalho compara os caquinhos com o tradicional piso de pedra portuguesa. “Que [em Portugal] era feito com sobras de mármore. No Brasil, o padrão foi reproduzido com outro tipo de pedra, de origem calcária, e novas cores”, explica. “Os caquinhos guardam muitas semelhanças gráficas com as pedras portuguesas, se pensado como estampa”.
Ele contextualiza: a presença grande de imigrantes ao longo do século 20, aliada ao fato de que os centros urbanos usavam muito as pedras portuguesas para as calçadas, criaram “um imaginário ponto para o surgimento dos caquinhos”.
“Temos o trabalho de aplicação dos pisos, geralmente feitos pelos próprios moradores, às vezes com a ajuda dos filhos, e sua irregularidade praticamente permite resolver problemas de escoamento como se resolve no campo, modelando contornos do solo”, diz ainda Carvalho. “Não deixa de ser prazeroso aplicar um material desse, pois é bem menos burocrático do que ter de lidar com linhas retangulares e planos triangulados. É de uma complexidade tão grande a lógica dos caquinhos que une beleza, prazer e simplificação…”.
“Olha que coisa bonita, que design bem resolvido!”, prossegue. “Há tanta imagem arraigada aflorando com os caquinhos que não tem como não gostar deles. E o resultado é muito bonito”.
Essa simplicidade icônica venceu até mesmo os argumentos de que a solução seria “coisa de pobre”, como pontua o arquiteto. “O fato é que ele é uma resposta de design muito bem elaborada, coletivamente, coada pelo tempo e autorizada pelo imaginário brasileiro”.
Até início do século 20, não existiam muitas possibilidades de revestimento para os pisos das casas. “Nas áreas úmidas e em muitas salas de jantar, era o piso de cimento hidráulico e, nas residências mais modestas, o cimentado, normalmente pigmentado com óxido de ferro”, comenta Machado.
Mais tarde, vieram os pisos cerâmicos com pigmentação vermelha. “Mantinha a estética do cimentado ‘vermelhão’, mas proporcionava maior facilidade de aplicação, maior durabilidade e mais facilidade de manutenção”, diz o professor.
O pesquisador Carvalho situa a moda dos caquinhos como algo que ocorreu nas construções entre os anos 1960 e 1980. “Nasci em 1980 e me recordo, ainda criança, do meu avô colocando piso de caquinhos no quintal que era apenas cimentado”, lembra ele.
Virou tão icônico que merece ser elevado ao status de simbólico do Brasil. “Eu coloco [o piso de caquinhos] no mesmo nível dos cobogós como elemento característico de nossa arquitetura moderna, e como padrão que já existia antes e persiste depois da nossa arquitetura moderna”, avalia Carvalho. “É como o samba, uma riqueza da terra, um produto genuíno da nossa cultura, cheio de significados”.