Rede para não fazer nada…

15 de março de 2024

Para o mundo europeu, a certidão de nascimento das deliciosas redes de dormir é a famosa carta escrita por Pero Vaz de Caminha (1437–1500), o cronista do descobrimento. Quando ele explicava como era a aldeia tupiniquim com a qual a expedição havia se deparado, pontuou que “haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam”.

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Não se pode dizer exatamente que tenha sido uma invenção “brasileira” — aqui entre aspas porque, certamente, é anterior à existência do Brasil como país ou mesmo com esse nome. No entanto, é certo que as redes, que se tornaram um símbolo de relaxamento no nosso país, foram concebidas originalmente por povos indígenas pré-colombianos. Isso acontece porque não há registro algum em outras partes do mundo antes da chegada dos conquistadores europeus à América. 

Em seu livro Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica (Global, 2003), o historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898–1986) explica que dormir em redes era uma vantagem ao indígena, uma vez que é mais fresco do que no chão e deixa a pessoa mais protegida de insetos e outros animais. Cascudo destaca que Caminha, por causa da carta, “é o padrinho da rede de dormir” e atesta que o texto do cronista “é o primeiro registro em língua portuguesa” do utensílio. “Batizou-a pela semelhança das malhas com a rede de pescar. Rede de dormir nunca [antes] Pero Vaz de Caminha deparara em dias de sua vida”, argumenta. “O leito obriga-nos a tomar seu costume, ajeitando-nos nele, procurando o repouso numa sucessão de posições”, analisa o historiador. “A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete, dócil e macia, a forma do nosso corpo.”

O objeto encantou tanto os europeus que logo conquistaria gostos universais. “Após a invasão europeia [ao continente americano], com os espanhóis, depois com os portugueses, a rede foi rapidamente disseminada pelo mundo. De modo que ainda no século 16 já há imagens de pessoas sendo transportadas em rede [em outras partes do planeta], explica o historiador da arte e curador Raphael Fonseca, autor da tese de doutorado “Construções do Brasil no vaivém da rede de dormir”, defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

“Há uma documentação que registra que esses produtos viajavam por dentro do então reino português, pelas colônias. Então, a rede, tecnologia dos povos originários da América Latina, saíam do Brasil e eram utilizadas em outras partes do mundo”, comenta ele.

Mais do que símbolo do Brasil, as redes se tornaram também onipresentes nas paisagens brasileiras — seja na casa de campo, seja no vendedor ambulante da praia. É preguiça, claro. Mas também é descanso merecido, é relaxamento. É a soneca depois do almoço de domingo. O autochamego. O mergulho nas raízes e na tradição. É o nosso dolce far niente. 

Edison Veiga Annima de Mattos
Edison Veiga Annima de Mattos
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