Não é preciso ser católico para saber alguma história ligada a Santo Antônio. Basta ser brasileiro. Porque, nas férteis terras da antiga colônia portuguesa, a devoção ao frade franciscano, que nasceu em Lisboa, no fim do século 12, e morreu em Pádua, em 1231, transcendeu a religião: virou folclore, imiscuiu-se na cultura popular, transformou-se em tradição.
O antropólogo e folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), atento a isso, dedicou um enorme verbete a Antônio em seu Dicionário do Folclore Brasileiro. “Encontrar noivo é também um milagre da paciência incrível. As moças submetem as imagens de Santo Antônio a todos os suplícios possíveis, na esperança de um rápido deferimento”, escreveu ele.
Destacava, oportunamente, a maneira como o imaginário brasileiro acabou reinventando os próprios poderes do santo. Se, em solo europeu, ele é conhecido por ajudar a encontrar coisas perdidas e por resolver causas impossíveis, no Brasil, ele logo ganhou a pecha de casamenteiro. E parece que não se faz de rogado — entre novenas, trezenas e simpatias, consta que tenha agido como cupido cristão e unido um sem-número de pombinhos de Norte a Sul.
“Santo Antônio entrou para o folclore brasileiro. Está entre os santos juninos, com São João e São Pedro, das festas ao ar livre, com fogueiras, fogos, cantos, danças, bebidas e comilanças típicas da época. Por conta de ser o santo casamenteiro, introduziu-se até o casamento caipira, com muito respeito, imaginação e graça”, comenta o frei Clarêncio Neotti, autor de, entre outros, Santo Antônio, Simpatia de Deus e do Povo.
Ele enfatiza que, não à toa, a data comercialmente escolhida para celebrar o Dia dos Namorados no Brasil é o 12 de junho, véspera de Santo Antônio. “Por que os namorados e os casadouros brasileiros escolheram Santo Antônio como seu padroeiro? É tradição muito antiga do mundo português. Poetas, trovadores e cancioneiros líricos cantam Santo Antônio casamenteiro”, pontua. “As crônicas civis do tempo contam que ele saiu em defesa do direito de todas as moças se casarem e conseguiu da autoridade civil a revogação do decreto que permitia o matrimônio e a maternidade só às moças que podiam pagar o dote, ou seja, uma soma em dinheiro ou em bens ao possível sogro. Em outras palavras, Antônio saiu em defesa da igualdade de direitos de todas as moças, indistintamente se ricas, se pobres. Porque o amor é direito de todos.
“No Brasil, entrando ele no folclore junino, que é extremamente familiar, a ponto de sempre haver a cerimônia do ‘casamento’, não podia ser outro o santo do casamento feliz”, acrescenta Neotti.
Conforme conto no meu livro Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil, a devoção antoniana foi trazida ao Brasil já no empreendimento que ficou conhecido como o Descobrimento, ou seja, em 22 de abril de 1500.
Na frota do navegador Pedro Álvares Cabral (1467-1520) vieram oito frades. Todos franciscanos, todos portugueses. Portanto, é altamente provável que tenham trazido a bordo uma imagem do santo, já então extremamente popular em Portugal, e uma das figuras mais importantes dentre todas da ordem fundada por São Francisco.
Logo, os franciscanos passaram a estabelecer conventos no Brasil — o primeiro em Olinda, em 1585; outro em Vitória, fundado em 1591; depois no Rio, em Santos e em São Paulo, na primeira metade do século seguinte. A devoção ao santo português, portanto, estava consolidada.
Foram, então, 500 anos de um caldo cultural em busca de uma liga que funcionou. Com o tempo, ele acabou sendo “reinventado”. “Na verdade, ele não foi ‘reinventado’, mas lhe foram dados outros atributos, além dos conhecidos na Europa”, explica o pesquisador e palestrante Ítalo Francisco Curci.
“A nação brasileira, como diversas nações latino-americanas, desenvolveu sincretismos religiosos, sobretudo pela miscigenação cultural”, salienta ele. Isso fez com que simpatias e uma série de tradições acabassem sendo desenvolvidas, associadas à figura carismática e simpática do santo português.
Curcio lembra que o fato de Antônio ser conhecido mundialmente como “o santo das causas difíceis” acabou aproximando dele as pessoas com dificuldade de encontrar um relacionamento. “Nesse contexto, há a história, no Brasil, de uma suposta jovem que teria pedido a Santo Antônio que a ajudasse a resolver o problema”, conta.
Suas preces teriam sido ouvidas. “A partir daí, com a história sendo difundida cada vez mais entre os brasileiros, a fama de ‘santo casamenteiro’ se ampliou. Chegou aos dias atuais, com este atributo de resolver o problema da falta de pretendentes, uma prática menos usual em outros países”, analisa o pesquisador.
As simpatias mais comuns envolvem uma certa malcriação ao santo, que, por vezes, tem sua imagem pendurada de ponta-cabeça até que o noivo apareça.
Como frisei em meu livro, “nas terras tupiniquins, a devoção antoniana ganharia um sotaque brasileiro”. Folcloristas como Câmara Cascudo já analisaram isso: a imagem de Antônio acabou sendo um pouco recriada por aqui. Ganharam ênfase o papel de casamenteiro. Simpatias e orações populares passaram a se sobrepor às práticas e celebrações convencionais da Igreja Católica.
Santo Antônio saiu do altar e misturou-se ao povo, com suas crenças, com suas manias, com suas tradições. Povo que já não era só um, mas uma mistura formada por indígenas, europeus e africanos — todos alvo de uma catequese importada do Velho Mundo que também procurava se adaptar, de certa forma, ao novo cenário.
“A fama de casamenteiro é a que mais marca na devoção popular aqui no Brasil”, concorda o padre João Ricardo de Oliveira Ventura, capelão da Marinha do Brasil e mantenedor do perfil @santoantoniodepadua, no Instagram. “Essa cultura popular surgiu de forma espontânea e acabou se difundindo de forma muito natural entre as pessoas.”
Ele ressalta, entretanto, que “a prática popular de colocar o Santo Antônio de cabeça para baixo não é recomendável pela Igreja”.