Chu Ming Silveira (1941-1997) era funcionária da, hoje extinta, Companhia Telefônica Brasileira (CTB), quando acabou encarregada de criar um mobiliário que servisse como proteção para os telefones públicos. Arquiteta nascida em Xangai, na China, e formada na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, coube a ela a invenção de um dos maiores símbolos do design brasileiro.
Depois de diversos estudos, ela concluiu que a forma de um ovo era a que garantia melhor acústica — e, claro, um design simples e bonito. Oficialmente, a CTB batizou os dois primeiros modelos implantados de Chu I e Chu II, em alusão à criadora. Os orelhões ganharam as ruas, primeiro do Rio e de São Paulo, em janeiro de 1972. De lá, espalharam-se pelo País.
No memorial descritivo do processo, a arquiteta deixou claro seu raciocínio. Ela partiu de um problema que consistia em “encontrar uma solução em termos de design e acústica para protetores de telefones públicos, que apresente uma relação custo-performance melhor que a dos já existentes, e que se adequem às condições ambientais”.
Ming Silveira lembrou que existiam duas possibilidades, os “telefones sem nenhuma proteção, simplesmente instalados em paredes de bares, farmácias etc.” e os localizados em “postos de serviços”, situados em “edifícios e praças, de forma concentrada”. Segundo a arquiteta, tais soluções apresentavam “uma série de inconveniências para o usuário”.
Depois de vários testes, a especialista chegou aos materiais ideais — acrílico e fibra de vidro — e ao formato de concha, otimizando a acústica. “O projeto contou com um excelente estudo do som, que gerou a forma final, inspirada em um ovo, que seria a com melhor acústica, fazendo com que os sons produzidos internamente convergissem para o ouvido do usuário, permitindo ouvir e falar com mais eficiência, considerando um ambiente externo bastante ruidoso”, analisa o desenhista industrial Leonardo Marques, coordenador do curso de Design da ESPM Rio. “Além disso, sua forma protegia o usuário da chuva e do sol, além de colaborar para que tivesse privacidade. E tudo isso com o uso de uma forma relativamente simples e com baixo custo de produção, permitindo a implementação de uma grande base de telefones públicos pelas cidades.”
Uma vez lançada, a invenção caiu no gosto popular. O cartunista Ziraldo logo traduziu o frenesi em uma ilustração. O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) publicou uma crônica a respeito no Jornal do Brasil. “A verdade é que a rua ficou sendo outra coisa, com as pessoas descobrindo que não precisam mais fazer fila no boteco ou na farmácia para dar um recado telefônico. Na própria calçada, uma vez comprada a ficha no jornaleiro, comunicam-se. Tão simples. Em outras cidades desse mundinho que é o mundo, já se fazia isso há muito tempo, mas aqui é novidade grande/ gostosa”, escreveu ele, chamando o orelhão de telefone-capacete, em contraposição às cabines cilíndricas que, em sua visão, despertavam “a agressividade”.
Para o arquiteto, urbanista e paisagista Henrique de Carvalho, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e proprietário do Ateliê Tanta, trata-se de “uma peça icônica”. “Do ponto de vista das explicações racionais e motivações funcionais de seu desenho, resolve uma série de problemas elegante e graciosamente. Protege o equipamento e o usuário das intempéries, além de contribuir para a acústica e a sensação de privacidade dos que ali estão. É barato de se produzir, transportar, repor, instalar”, comenta ele. “Um belíssimo exemplo do verdadeiro valor do design, que é dar-se ao uso do maior número de pessoas, sem exclusivismos.”
Carvalho ainda destaca “outros valores” que explicam sua “integração à nossa cultura urbana”. “É uma peça que dialoga de maneira afinada com o design futurista do final dos anos 60. Dirige-se muito mais ao mundo que veio a existir depois dele, aquele do design bem-humorado e ousado, principalmente o italiano, do que ao imaginário local anterior a ele, da quase obrigatoriedade paulista de que tudo fosse feito em concreto”, compara o arquiteto.
Para o especialista, o orelhão é moderno “na acepção popular do termo”: “É uma peça levíssima, acolhedora e, em certa medida, tropicalista.” “Contrariando o arquétipo adotado nos países de clima frio, que é a cabine fechada, com porta, ele é a peça mais adequada ao clima quente e tropical. Se os outros eram casacos telefônicos, ele é a sunga”, acrescenta. “É sensual, arredondado, uterino. Fica lindo no calçadão da praia ou ao lado de uma grande jardineira, mas também enriquece plasticamente os paredões genéricos e pontos aleatórios nas calçadas que o recebem.”
Ming Silveira foi reconhecida. Em 1973, a profissional participou da Bienal de Arquitetura de São Paulo com sua criação. Sete anos mais tarde, a peça fez parte de uma exposição na Fiesp. Em 1982, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) promoveu uma mostra sobre design brasileiro no Sesc Pompeia —, e o orelhão foi destaque. Em 2009, a cabine telefônica também figurou em exposição realizada no Museu da Casa Brasileira.
Em tempos de celulares onipresentes, contudo, esse item caprichado da paisagem urbana brasileira parece condenado à extinção. A sucessora da CTB em São Paulo foi a Telesp, depois privatizada como Telefónica, hoje utilizando a marca Vivo. Procurada pela reportagem, a empresa disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que não gostaria de falar se tem ou não planos para o futuro de tais cabines — também se negou a informar quantos orelhões ainda estão em uso.
O desenhista industrial Marques lembra que hoje em dia “há projetos de reaproveitamento das conchas dos orelhões, ressignificando e transformando-os em poltronas, balanços, floreiras e diversas outras formas de reuso, que dão destino digno para o fim de um primoroso projeto de grande impacto social”.
Carvalho, por sua vez, vislumbra um futuro em que eles servissem para funções como “abrigo da chuva em situações urbanas”, cabines para privacidade, “onde não é de bom-tom falar alto ao telefone” ou mesmo para abrigar “telefones de emergência”.
Outras ideias ocorrem ao pesquisador. “Talvez pudessem ser incorporados aos drive-thrus, aos caixas dos bares, com um buraco nele. Um orelhão espelhado para os dois lados”, diz. “Pensando em usos mais ousados, fico imaginando cadeiras com orelhões acoplados, em restaurantes, com bloqueio de celular integrado, estimulando a conversa entre as pessoas e com acústica adequada, inclusive. Pensando em opções menos fantasiosas, poderiam aparecer em espaços expositivos, com alguma informação audiovisual envolta por sua cúpula.”