Ao longo dos últimos anos, o mundo vem passando por transformações geopolíticas que acabam influenciando os fluxos comerciais entre os países. Enquanto alguns especialistas classificam este momento como “desglobalização”, em função da reorganização de cadeias produtivas globais, Lucas Ferraz, secretário de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia, analisa a conjuntura atual como uma “reglobalização”. Para ele, o Brasil pode ocupar um lugar de destaque neste cenário que está se descortinando.
Na opinião de Ferraz, os países não devem enfrentar o atual cenário de incertezas com o retorno ao modelo de substituições de importações. “As cadeias de valores serão reconfiguradas em blocos mais ocidentais e outros mais orientais, com Estados Unidos e União Europeia preferindo negociar com países amigáveis. E o Brasil se encontra em uma posição muito favorável, sendo um grande exportador de commodities agrícolas, energéticas e minerais, além de ser um fornecedor confiável.” A análise foi feita em reunião promovida pelo Conselho de Relações Internacionais (CRI) da Federação de Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), em 2 de maio.
Ferraz pontua ainda que, se o Brasil mantiver sua agenda de flexibilização de normas e de modernização de processos de importação e exportação, que tornaria o ambiente de negócios nacional mais atrativo, poderá se tornar um importante parceiro comercial para diversos países. Ele destacou que a pauta da Secex inclui a modernização do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a conclusão de acordos bilaterais com países estratégicos, além da busca pelo protagonismo sul-americano em acordos não tarifários, que dispensam a participação dos membros da Organização Intergovernamental Regional, fundada a partir do Tratado de Assunção, em 1991.
Segundo Rubens Medrano, presidente do CRI, a assimetria entre os países do Mercosul torna o comércio intrabloco mais difícil, diferentemente do que ocorreu na Ásia. Ainda assim, “valeria a pena o Brasil tentar levar ao bloco a mensagem de modernização e abertura comercial das economias ao mundo. Como maior economia, cabe ao País tentar puxar os demais.”
Confira abaixo os principais aspectos da agenda comercial global avaliados por Ferraz.
A gestão da Secex se baseia em três eixos: a intensificação da rede de acordos internacionais, a reforma do Mercosul e a agenda não tarifária ou desburocratização do comércio internacional brasileiro.
“Hoje, quando o Brasil exporta suas mercadorias, conta apenas com 13% de acesso preferencial na economia global e concorre contra cerca de 60% dos países preferenciais, ou seja, há enorme necessidade de uma intensificação na rede de acordos”, aponta o secretário.
Porém, Ferraz percebeu que não bastava demonstrar a intenção de abrir o mercado brasileiro para aparecerem interessados. “Temos que levar em conta que, desde 2019, o mundo vive um período conturbado, com guerra comercial, mas muitos países seguiram avançando nos acordos comerciais, como a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), que conta com China, Coreia do Sul e Japão [além de mais 12 países da Ásia e da Oceania] – que representam cerca de 35% do PIB mundial. Isso nos faz concluir que a mudança no humor comercial é algo muito mais ocidental”, afirma.
As maiores dificuldades para avançar com os acordos do Mercosul são as diretrizes obsoletas que ainda regem as negociações. “Nosso foco continua sendo instrumentos tradicionais, como cotas, tarifas e subsídios, que são importantes, mas damos pouca ênfase à agenda não tarifária, que engloba serviços, investimentos e propriedade intelectual”, pontua Ferraz, que cita ainda as diferenças políticas e de ambições como gargalos para alcançar o consenso dos membros do Bloco.
Em contrapartida, internamente, o Brasil conseguiu mitigar a burocracia dos processos e reduziu o tempo médio de importações, de 17 para 8 dias. Já as exportações passaram de 13 dias, média praticada na inauguração do Portal Único do Comércio Exterior, em 2018, para 7 dias, neste ano. “Esses parâmetros estão muito próximos das médias de países desenvolvidos. Mas, no âmbito do Mercosul, as coisas continuam iguais”, diz.
Na visão de Ferraz, mesmo com a estagnação do Mercosul, o Brasil conseguiu evoluir em tratativas importantes. Entre elas: concluiu o acordo com a União Europeia, em 2019; firmou negócios com a Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA, na sigla em inglês); estabeleceu acordo automotivo com o México (para comercialização de veículos pesados) e com a Argentina (livre comércio de bens automotivos até 2029); concluiu protocolo bilateral não tarifário com os Estados Unidos, que facilita o comércio e as práticas regulatórias anticorrupção; aderiu ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio (OMC), cujo processo deve ser concluído ainda neste ano, tornando o Brasil o primeiro país da América Latina a integrá-lo. O governo pretende firmar, em breve, um acordo de aviação civil com a OMC e negocia acordos com Coreia do Sul, Singapura e Canadá.
Na seara regulatória, o secretário enumera conquistas do governo que diminuíram a burocracia e agilizaram os negócios internacionais, como a aprovação e regulamentação da Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019).
“Até 2019, a Secex emitia 1,2 milhão de licenças de importação, muitas delas totalmente desnecessárias, que oneravam o comércio exterior brasileiro. Reduzimos cerca de 60% deste montante de licenças, o que significa a diminuição de aproximadamente 700 mil licenças eliminadas”, conta. A secretaria também encerrou o Sistema Integrado de Comércio Exterior de Serviços, Intangíveis e Outras Operações que Produzam Variações no Patrimônio (Siscoserv), que, segundo Ferraz, gerava cerca de cinco milhões de registros de importação e exportação de serviços “totalmente desnecessários, pois não atendiam ao seu objetivo principal de gerar estatísticas para a formulação de políticas públicas, uma vez que os dados não são confiáveis”.
Hoje, a pasta utiliza os dados do Banco Central para formular políticas públicas para o comércio exterior. Com isso, além de eliminar os mais de cinco milhões de registros, deixa de gastar R$ 23 milhões por ano.
Uma das principais reclamações de quem importa produtos via e-commerce é o limite muito baixo da isenção tarifária. O de minimis (expressão em latim que significa “o mínimo”) é a isenção da tarifa de importação sobre encomendas de até US$ 50. Por trás desta regra, está o princípio de que, para produtos abaixo deste valor, não valeria a pena mobilizar esforços aduaneiros para a cobrança dos impostos.
A forte presença da China no comércio eletrônico, segundo Ferraz, desequilibrou este mercado e obrigou vários países a mudar suas regras locais. “A União Europeia acabou com o de minimis e, hoje, nas operações até US$ 150 é cobrado um IVA [Imposto de Valor Agregado]. Acima de US$ 150 é cobrado, além do IVA, o imposto de importação”, conta.
Os casos de fraudes também preocupam a Secex e a Receita Federal, que debatem as soluções para a importação de produtos de pequeno valor para o Brasil. A proposta inicial é caminhar com o modelo da União Europeia, equalizando as regras do jogo, cobrando impostos locais para equiparar as condições com os produtores brasileiros. Aliado a isso, o governo também discute flexibilizar o monopólio das operações dos Correios, abrindo o mercado para empresas estrangeiras. “Considerando o nível de governança das empresas privadas, a medida trará mais segurança jurídica para esse tipo de comércio”, atesta Ferraz.
A agenda do governo brasileiro pleiteia a reforma do regime de origem do Mercosul. De acordo com Ferraz, a exigência de 60% de componentes nacionais em produtos importados está desatualizada. “Cerca de 2/3 do comércio internacional continuam fundamentados em partes e componentes, inputs para processos produtivos. A exigência de 60% de componentes nacionais é algo fora da realidade atual, e negociamos com os países uma redução de 10 pontos porcentuais”, aponta.
Outro foco da negociação para modernizar o Mercosul está na simplificação da Tarifa Externa Comum (TEC). O objetivo é reduzir a média para torná-la condizente aos países do nível de desenvolvimento brasileiro. Segundo Ferraz, a secretaria já conseguiu um corte de 10% e negocia novos reajustes para alcançar os 20%.
Para o secretário da Secex, o Mercosul precisa se modernizar para entender se realmente existe a necessidade de se negociar em bloco.
“Devemos trabalhar em uma linha com maior flexibilidade negociadora. Recebemos muitos retornos de países importantes no mercado global que gostariam de negociar acordos com o Brasil, mas esbarram na obrigatoriedade de firmar acordos conjuntos com os países do Mercosul”, diz.
“Precisamos firmar compromissos mais ambiciosos na área não tarifária, que dispensa a participação do Mercosul, para sinalizar ao mundo que o Brasil é capaz de ser um parceiro importante. O compromisso conjunto com o Mercosul se limita à área tarifária, e o Brasil tem o dever de sinalizar o caminho para os demais sócios do Mercosul na área não tarifária”, conclui Ferraz.