Era um Brasil de 30 milhões de habitantes aquele de 1922. Na São Paulo ainda provinciana, imigrantes pobres inventavam sotaques do português, uma elite pequena teimava em copiar modismos importados da Europa, e respirava-se um anseio de liberdade depois da grande epidemia de gripe espanhola. A versão digital da edição impressa da PB está disponível na banca virtual BANCAH.
Corta para 2022. Nós, brasileiros, somos mais de 210 milhões, São Paulo consolidou-se como força motriz do País, o caldeirão cultural permite espaços para todos os nichos, nacionais e importados, do mainstream e das periferias. Talvez tenhamos superado a covid-19, talvez. Talvez haja um grande carnaval, talvez.
Cem anos depois, o Brasil de hoje tem muito do que foi idealizado lá atrás, aquelas sementes fincadas por um grupo de agitadores no Theatro Municipal de São Paulo na chamada Semana de Arte Moderna. Depois daquelas levas de imigrantes, majoritariamente italianos, portugueses, espanhóis, alemães, japoneses e sírio-libaneses, vieram outras levas. O Brasil passou a abrigar muitos e muitos judeus de várias partes do mundo, coreanos, chineses, europeus de diversos países do leste. Mais recentemente, tornou-se porto seguro para haitianos, bolivianos, peruanos, argentinos, paraguaios, colombianos, africanos de muitas partes.
A antropofagia fincou-se como instituição, claro. Assim como apregoava Oswald de Andrade (1890-1954), o Brasil se fez Brasil porque deglutiu outras culturas e, tal e qual um índio canibal, transformou-se, enriqueceu-se. E o Brasil também foi construído graças aos imigrantes, que contribuíram e contribuem com seu trabalho, seus saberes, sua vontade de vencer.
Mas nem tudo são maravilhas nesses paralelos, obviamente. Crises unem esses dois brasis separados por um século. “Assim como naqueles anos 1920, hoje, a gente vive também uma crise política violenta, com polarização entre direita e esquerda. E novamente há a burguesia e um conservadorismo forte nas artes tolhindo completamente a expressão artística, calando a boca de muitos artistas que resolvem até ir embora do Brasil”, comenta o músico, produtor musical e pesquisador independente Márcio de Camillo.
As tentativas de pasteurizar a cultura estão novamente em voga, como políticas públicas. Rebaixado ao status de secretaria, o Ministério da Cultura tem se posicionado contra manifestações artísticas que não sejam condizentes com as ideologias que hoje ocupam o poder. Filmes com temáticas que violem o conservadorismo vêm sendo desclassificados de editais de financiamento. Em suas lives semanais, o próprio presidente não se furta a criticar artistas que não sejam alinhados ao seu pensamento.
Nenhum desses detratores podem ser comparados a um Monteiro Lobato (1882-1948), crítico de primeira hora dos modernistas, porque lhes faltam a bagagem intelectual e o refinamento do escritor. Para Camillo, aliás, um Lobato seria bem-vindo, para “novamente fazer explodir todos os conceitos” e desencadear um movimento tão intenso quanto aquele.
Pesquisador de culturas populares, professor da Universidade de São Paulo e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo, Alberto Tsuyoshi Ikeda recorda que, para ler a sociedade brasileira contemporânea, é preciso juntar alguns pontos transformadores das últimas quatro décadas.
A partir dos anos 1980, ocorreu a consolidação de diversos movimentos, que passaram a ser vistos como protagonistas da própria organização da intelligentsia nacional. “Houve um boom de implicações políticas, com o crescimento do terceiro setor, as preocupações com direitos humanos, o reconhecimento das periferias, do movimento negro, dos grupos indígenas, dos movimentos feministas, ecológicos e tantos outros. Isso acabou coincidindo, o ápice, com os anos 2000”, enumera ele.
O início do século 21 foi marcado, então, pela maturidade desses grupos, pela reinterpretação do que era ser Brasil, do que significava ser brasileiro. A própria Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco, deu um bom empurrão nesse debate, passando a valorizar a cultura imaterial e os saberes populares, reconhecendo-os como patrimônio.
“Não é à toa que então vemos a proliferação de grupos que se dedicam a danças tradicionais populares e a manifestações no Brasil inteiro”, comenta Ikeda.
O escritor e professor universitário Miguel Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, vê semelhanças entre estes dois mergulhos, o de 1922 e o de agora. “O contato com os grupos minoritários incorpora à identidade brasileira elementos sociais e culturais que, até então, eram impensados. O carnaval passa a ser positivado [com o modernismo], há a positivação das religiões africanas, do interior, da nossa própria história, dos elementos das forças populares da história do Brasil”, ressalta.
É como se, a partir daquele momento, não fosse mais exclusividade da narrativa a história dos vencedores. “A Semana de 22 nos preparou para uma compreensão do Brasil enquanto força popular, em um País de bastantes contrastes, com uma diversidade social e cultural muito grande, também do ponto de vista social, democrático. Somos o efeito da Semana de 22, tanto na cultura como no social também: muitos movimentos de esquerda, movimentos populares da área da política estão conectados aos modernistas”, diz Sanches Neto.
Artista plástico, colecionador de arte e presidente do FAMA Museu e Campo, Marcos Amaro tem um apreço especial pelo período — não à toa, é quem detém o maior número de trabalhos de Tarsila do Amaral (1886-1973). Ele acredita que os modernistas legaram ao País uma maneira contemporânea de analisar a sociedade. “Trouxeram uma preocupação política e social que é muito importante, principalmente para um país como o nosso, onde falta uma distribuição de renda mais igualitária”, comenta. “Os artistas modernos acabaram contribuindo para esse pensar, acrescentaram uma visão social, olhando para a sociedade de forma mais justa, mais humana. A partir deles, os artistas passaram a ter um olhar mais humanista sobre a realidade.”
Para Amaro, é por esse prisma que o Modernismo contribuiu para as bases da sociedade atual. “De certa forma, os modernistas trouxeram aspectos de nossa brasilidade de maneira potente, e isso foi muito importante para a cultura brasileira”, ressalta.
Camillo lembra que, enquanto a Semana de Arte Moderna acontecia no Theatro Municipal, os Oito Batutas, o grupo liderado por Pixinguinha (1897-1973), mostravam a Paris o que era a música genuinamente nacional. “Havia preconceito da burguesia pela arte que vinha do morro”, pontua. “E, hoje, também, algumas pessoas torcem o nariz para o que é novo e vem da periferia: uma cultura que é resultado do abandono, da falta de investimentos em educação. Mas eles decodificam a informação e criam a própria arte.”
Antes, era o samba, era o chorinho. Agora, é o funk, o pop contemporâneo. “O que está aí é a Anitta, não a [pintora Anita] Malfatti [que desencadeou o Modernismo], mas a [popstar] Anitta que, 100 anos depois, está nos Estados Unidos mostrando uma arte brasileira, gostemos ou não. É um paralelo, 100 anos depois, de duas Anitas que mostram o Brasil real. Por mais que o divida”, filosofa Camillo.
No fundo, a dificuldade de assumir as vanguardas pode ser explicada pelo complexo de vira-latas que resiste e acaba até fortalecido a cada derrota econômica, a cada fracasso como projeto de país, a cada 7 a 1 que tomamos. Nesse sentido, o antropólogo e sociólogo Marko Monteiro, professor na Universidade Estadual de Campinas, traz uma chave de interpretação.
“O movimento de 1922 expressa nossa busca por uma identidade autônoma na cultura, nas artes, mas ainda muito calcada na nossa percepção de um País inserido numa modernidade ocidental, ainda que de forma marginal. É um desejo de ser ‘europeu’, ainda que de forma própria, talvez uma certa dificuldade em superar essa nossa situação colonial”, explica.
“Acho que ainda estamos por construir formas genuinamente nacionais de pensar o País para além desses parâmetros, mas, talvez, projetos como este, hoje em dia, sejam inviáveis ou fora de época. E seja mais interessante vivenciar a pluralidade explosiva do Brasil, tanto na arte quanto na cultura”, aventa ele.