50 anos de ritmo e poesia

28 de dezembro de 2020

A trajetória ímpar e vitoriosa do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela e de sua Velha Guarda – grupo de sambistas veteranos revelado há 50 anos pelo compositor Paulinho da Viola – tem origem no subúrbio carioca de Osvaldo Cruz e numa via de passagem que o liga ao vizinho bairro de Madureira: a Estrada do Portela

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Situadas na Zona Norte do Rio de Janeiro, as terras originalmente concedidas em regime de sesmaria [sistema da Coroa portuguesa que distribuía terras brasileiras para a produção agrícola] aos portugueses Miguel Gonçalves Portela e Lourenço Madureira começaram a se urbanizar ao final do século 19, em torno das estações da Estrada de Ferro Central do Brasil.

Uma delas, a de Rio das Pedras, seria rebatizada em 1917 com o nome do médico sanitarista Oswaldo Cruz, atribuído também ao bairro que se formava a partir de duas correntes migratórias: aos ex-escravos que ali se fixaram após a Abolição da Escravatura somaram-se moradores do centro da cidade, expulsos a partir de 1910 pelas reformas urbanas empreendidas pelo então prefeito Pereira Passos.  

Entre esses últimos, estava um menino negro de nome Paulo Benjamim de Oliveira, que passaria à história do samba como Paulo da Portela, escola por ele fundada em 1923. Com a águia como símbolo e as cores azul e branco, “A majestade do Samba”, como carinhosamente passou a ser chamada, se tornaria a maior campeã do carnaval carioca, com 22 títulos entre 1935 e 2017.

Na década de 1960, outro Paulo deixaria sua marca na escola, ao se encantar com os veteranos da Ala de Compositores que acabara de integrar. Filho do renomado violonista César Faria, o jovem Paulo César Baptista de Faria, o Paulinho da Viola, deparou-se com um tesouro que poderia se perder caso dependesse exclusivamente da memória daqueles que o produziam. “A maioria dos sambas vai embora porque a gente esquece”, dizia candidamente Casquinha, parceiro de Paulinho no samba Recado.

Sofisticados na melodia e líricos na letra, mesclando o sabor rural de maxixes e calangos com a rebuscada harmonia do chorinho, os sambas reunidos por Paulinho da Viola em 1970, para o álbum inaugural da Velha Guarda da Portela, desvelavam ao público uma plêiade de talentosos e até então desconhecidos compositores: Aniceto de Andrade, Manaceia, Mijinha, Chico Santana, Ventura, Alvaiade, Alberto Lonato, Rufino e Monarco – autor da faixa Passado de Glória, que deu título ao disco. Completavam o grupo em sua formação inicial o coro de pastoras nas vozes de Vicentina e Iara.

O sucesso imediato e estrondoso lançou, ao estrelato internacional, personagens que sequer tinham o samba como profissão, pois apenas se reuniam no quintal de suas casas – num dia de semana depois da feira e aos domingos – para cantar e dançar em verdadeiro ritual assim descrito pelo padrinho: “Nunca mais ouvi aquilo na vida. O som fechado, quase maçônico. Na batucada havia cavaquinho, palmas, vários pandeirinhos, os famosos adufes, sem platinelas. Esse toque da Velha Guarda nos deixa embevecidos”, resume Paulinho da Viola.

Embevecidas também ficaram as madrinhas da Velha Guarda, Clara Nunes e Marisa Monte, além das plateias parisienses tanto da Cité de La Musique como da Grande Halle de La Villette, para as quais a troupe se apresentou em junho de 2000. 

Nesse mesmo ano, o Canecão do Rio de Janeiro viveu momentos singulares no show de lançamento do quarto CD do grupo, Tudo Azul, que levaram a um emocionado registro feito pelo repórter Hugo Sukman nas páginas do jornal O Globo: “Velhos, como todos sabem, são tratados como lixo no Brasil. Se forem pretos e morarem em bairro pobre e periférico, então, são potencialmente as pessoas mais infelizes do mundo. Por isso, além da grandeza da música que faz, a Velha Guarda da Portela é antes de tudo uma aula de civilização”.

Reduzido e modificado ao longo do tempo pela morte de seus componentes, o grupo atravessou cinco décadas apresentando-se em teatros e casas de shows com a elegância e a dignidade que motivaram o surgimento de similares em outras escolas, como na eterna rival, a Estação Primeira de Mangueira.

Acomodados em carros alegóricos nos desfiles, esses veteranos têm uma missão assim explicada no Dicionário da história social do samba, de Nei Lopes e Luis Antonio Simas: “O substantivo ‘guarda’ é usado na acepção de ‘tropa de vigilância’, o que traduz a ideia de guardiões e defensores da tradição”.  

Esta função ficou claramente demonstrada em 3 de outubro do ano passado, quando foi ao ar pelo YouTube a live comemorativa do cinquentenário. Ao longo das duas horas e meia de puro samba, Monarco, único sobrevivente da formação original, assistiu e participou do show pela internet devidamente protegido do covid-19. Do alto de seus 87 anos, pontificou: “Seguimos vigilantes contra perigosos desvios”.  

Saiba mais
A Velha Guarda da Portela, de João Baptista M. Vargens & Carlos Monte, editora Manati, 2004.
Documentário O Mistério do Samba, de Carolina Jabor e Lula Buarque de Holanda, 2008.

Hebert Carvalho Paula Seco
Hebert Carvalho Paula Seco