Uma das maiores pintoras brasileiras de todos os tempos, Djanira da Motta e Silva (1914–1979) teve o seu nome propagado dentro e fora do País pela maneira única de pintar “o que é realmente nosso”, como gostava de afirmar. Apesar de todo o trabalho e do reconhecimento em vida como artista, hoje, o seu imenso valor precisa ser redescoberto no universo cultural. Afinal, as suas obras — todas marcadas por uma grande riqueza cromática, temas nacionais e uma inusitada mescla de figuração e geometrismos — imortalizaram Djanira de maneira singular na história da arte brasileira.
Pelas veias da mulher de aparência cansada e enferma corriam, simultaneamente, sangues indígena e austríaco. O próprio rosto estampava marcas de infância e juventude vividas na pobreza. Assim era a pintora Djanira da Motta e Silva, uma sobrevivente. Ao longo de uma vida agitada, a artista se submeteu a 18 intervenções cirúrgicas após vencer a tuberculose — mas não o diabetes. A mesma feição sofrida, entretanto, reluzia uma serenidade intensa e uma insuspeitada alegria, quando empunhava os pincéis para recriar, com amor e cuidado, as paisagens física e humana da sua nação.
A crítica especializada ressalta que a artista conseguiu reproduzir a fisionomia do Brasil e de sua cultura. Como aponta Loris Graldi Rampazzo, doutora em Artes pela Universidade de São Paulo (USP), a obra de Djanira se desenvolveu em sentido ascendente. “Por meio de conteúdos singelos, extraídos da vivência e de diuturna pesquisa em meio ao povo brasileiro, a artista revelou, nas telas, usos, costumes e aspectos de seu tempo, no Brasil.”
Djanira nasceu no dia 20 de junho de 1914, em Avaré, na época um produtivo município cafeeiro da região sorocabana. O pai, dentista ambulante, descendia de aldeias do Sul, enquanto a mãe, mineira, era filha de tiroleses. Aos quatro anos, a menina foi levada pelos pais para Porto União, entre Paraná e Santa Catarina, onde conviveu numa família adotiva até a adolescência. De volta ao interior paulista, trabalhou na roça e aprendeu a plantar e a colher café, antes de ir a São Paulo para morar sozinha. Na metrópole, tornou-se vendedora de rua, costurou fardas para a Revolução Constitucionalista e se casou com um marinheiro. Em meio a privações e angústias, adoeceu dos pulmões e foi internada no Sanatório Dória, em São José dos Campos (SP), já desenganada pelos médicos.
A descoberta do dom artístico se deu numa noite de solidão, quando, ainda acamada, fez o primeiro desenho: um Cristo no calvário, tosco e desfigurado. Esse exercício fê-la se curar e, grata, nunca largou papel e lápis. Foi para o Rio de Janeiro, no fim da década de 1930, e se fixou no bairro de Santa Teresa. Lá abriu uma modesta pensão e se tornou modista, costurando “para fora”. Nas horas vagas, porém, continuava elaborando desenhos para distração. Acolheu, então, como hóspede um refugiado de guerra: o pintor romeno Emeric Marcier. Impressionado com o evidente talento de Djanira, ele lhe propôs um trato: casa e comida em troca de conselhos e orientação no manejo de tintas e pincéis. Durante cinco meses, ele a treinou na “cozinha da pintura”, influenciando nas cores terrosas e baixas do início da sua criação. Logo em seguida, porém, independente, a aluna criou um estilo próprio por acreditar no seu potencial.
Aos poucos, a modesta pintora se integrou ao mundo artístico carioca e conviveu de perto com outros artistas que a incentivaram e estimularam, dentre os quais Milton Dacosta, Carlos Scliar, Árpád Szenes e Maria Helena Vieira da Silva. Nessa época, atraiu a simpatia de alguns críticos, como Ruben Navarra e Flávio de Aquino. Este último, bem impressionado, declarou: “Djanira pinta como se a pintura fosse invenção sua”.
Embora tenha tido somente algumas aulas com Marcier e frequentado, por pouco tempo, o Liceu de Artes e Ofícios (RJ), Djanira se manteve no autodidatismo e assim se definia: “Sou autodidata, eu mesma fui o meu ponto de partida. Tudo muito difícil, sozinha a abrir caminho”. Intuitiva, acrescentava: “Sem cuidados formais, não há obra de arte. É necessário critério com o desenho, com a composição, a cor. Sou fundamentalmente humana e formalista”.
Um colorido triste e soturno parecia dominar os primeiros quadros de Djanira. No entanto, paulatinamente, a cor foi se avivando, e o desenho — inicialmente, rudimentar — se apurou. A sua estreia se deu em 1942, no Salão Nacional de Belas Artes, quando admitiu: “Eu tenho a ambição de reproduzir alguma coisa de brasileiro. Eu sei que essa coisa existe e é enorme”. Corajosa, entre 1945 e 1947 esteve nos Estados Unidos, numa viagem fundamental para a sua evolução na pintura. De lá, retornou consagrada e passou a viajar constantemente dentro do Brasil ao longo das décadas de 1950 e 1960. “Não posso deixar de sair, de aprender com o povo, de anotar exemplos, de observar parcelas de benefícios de todos nós”, justificava a artista, que se tornou amiga de Jorge Amado, a ponto de pintar na residência do escritor o mural Candomblé.
A partir de então, Djanira se tornou ícone da arte nacionalista. Fez de camponeses, pescadores, vaqueiros, operários, indígenas, negros e brancos protagonistas de sua obra, povoada também por santos católicos e orixás africanos. Da mesma maneira, a artista se deixou seduzir pelas cidades coloniais e os múltiplos cenários que visitou no Maranhão ou em Santa Catarina, nas praias do litoral fluminense ou entre as montanhas de Minas. Ela viu pessoalmente tudo isso — e tudo relatou —, achando, para cada tema, a forma exata e o tom preciso.
O que definitivamente caracterizou a arte de Djanira foi o senso da construção formal que a acompanhou desde o começo, de tal modo que muitas telas se aproximam da abstração, sem por isso deixarem de representar formas conhecidas: um engenho, uma usina, um mecanismo. Embora baseada inteiramente na tradição popular e tendo partido de uma visão ingênua dos seres e das coisas, a artista atingiu, com o passar dos anos, depuração e contenção raras na arte nacional, que, hoje, servem de inspiração até para estudos sociológicos e antropológicos.
Boa parte do que Djanira realizou em mais de 40 anos de carreira ainda pode ser vista nos dias atuais em mostras frequentemente organizadas com pinturas, desenhos, gravuras e tapeçaria, peças do acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio.
Falecida aos 65 anos, em 31 de maio de 1979, depois de ter habitado as ricas vertentes populares do Brasil e de ter confiado no desenvolvimento de uma arte autenticamente nossa, Djanira legou ao País uma obra cheia de cores: Minas Gerais de Aleijadinho, a doce cidade de Paraty, as casas de farinha, as colheitas de chá, os santos milagrosos, os operários das fábricas, os cristos negros, as mulheres do campo, a Bahia e as crianças pobres.
Primeira artista latino-americana a ter uma obra integrada à Pinacoteca do Vaticano, por escolha do Papa Paulo VI (que a condecorou em 1972 pela oferta da tela Sant’Ana de Pé), ela, católica fervorosa, nunca escondeu a sua religiosidade, a ponto de ter sido sepultada com o hábito de irmã da Ordem Terceira Carmelita Descalça.
A vasta produção artística de Djanira está dispersa pelo Brasil de Norte a Sul, seja em acervos públicos, seja em coleções particulares. O maior número de suas obras, cerca de 800, está guardado no Rio, no MNBA. Contudo, muitas outras podem ser vistas em diferentes museus e palácios, como o do Planalto, em Brasília (DF), na sala de despachos da Presidência da República, ou até mesmo na terra natal da pintora, em Avaré (SP), onde um pequeno memorial conserva serigrafias, xilogravuras e artefatos originais do seu antigo ateliê.
A artista trouxe o Brasil em suas mãos, e assim como Jorge Amado havia previsto em 1959, no dia em que se escrever a história da arte brasileira, “vai-se dizer de Djanira que sua pintura nasceu do povo, cresceu com ele, com ele se tornou poderosa e densa de drama e de pura alegria. Essa a sua grandeza, a sua força de permanência, a sua mágica realidade”. Tudo porque ela entregou de volta ao povo, multiplicado em arte, aquilo que o povo lhe deu em vida: realidade e mistério.