A revolução pelo humor

01 de julho de 2021

Em 1969, no começo dos Anos de Chumbo, canais de expressões cultural e política estavam interditados pelo AI-5, que colocou a imprensa sob censura. Nesta reportagem, publicada na edição #452 da revista PB, recuperamos a trajetória do semanário O Pasquim, jornal alternativo que desafiou o regime militar brasileiro com humor ácido. O conteúdo da PB está disponível nas melhores bancas digitais. Acesse.

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Em plena ditadura militar no Brasil (1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985), um grupo de humoristas e jornalistas cariocas decidiu fazer um jornal para o bairro de Ipanema, nos moldes do The Village Voice, veículo pioneiro da imprensa underground dos Estados Unidos. Na discussão sobre o nome da publicação, o cartunista Sérgio Jaguaribe, um funcionário do Banco do Brasil que abreviou para “Jaguar” a sua assinatura nos desenhos, disparou: “Que tal Pasquim?”. A explicação para assumir um termo que o dicionário registra como “jornal difamador” ou “folheto injurioso” foi singela: “Terão de inventar outra coisa para nos xingar”. O fato é registrado no livro O Pasquim: Antologia Volume I (1969-1971), da Editora Desiderata.

Com muita ilustração e uma linguagem coloquial que mudaria os rumos do jornalismo (e até da publicidade), O Pasquim chegou às bancas em junho de 1969 e, em poucos meses, se tornou um sucesso estrondoso, abrindo espaço para mais de uma centena de periódicos que circularam durante a década de 1970 e ficaram conhecidos como “imprensa alternativa” ou “nanica”, por adotar o formato tabloide. Sem contar com grandes anunciantes privados ou estatais, organizados em sociedades por cotas ou cooperativas e sustentados pelos próprios leitores, a exemplo do que ocorre hoje com os blogs independentes da internet. Estes veículos abrigavam temáticas políticas, culturais e de comportamento ignoradas pelos grandes meios de comunicação. Mesmo quando buscavam públicos específicos – como mulheres, negros ou homossexuais –, mantinham em comum a rejeição ao regime autoritário. “Chega a ser irônico falar em imprensa alternativa: houve um momento que eles foram, de fato, os únicos canais disponíveis para a crítica e a informação independente. Os únicos a forçar até o limite e a driblar, muitas vezes, a marcação da censura”, avalia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) para o livro Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, de Bernardo Kucinski, sobre o papel na luta pela democracia, no Brasil, de órgãos como O Pasquim, Opinião e Movimento – os semanários mais longevos e de mais destaque no período. Dentre os fatores que impulsionaram a imprensa alternativa, ressaltou-se a disseminação do método offset de impressão a frio, que possibilitava a ocupação do tempo ocioso das gráficas dos grandes jornais para processar pequenas tiragens a custo reduzido. A logística da distribuição – gargalo de qualquer publicação num país com as dimensões do Brasil – também se favorecia do sistema implantado pela Editora Abril para abastecer as bancas de jornais.

No entanto, como as distribuidoras se apossavam de 40% da receita, os jornais tinham de ter uma tiragem mínima de 25 mil exemplares para viabilizar a circulação nacional. Dos pontos de vista cultural e político, os alternativos surgiram da articulação de duas forças “igualmente compulsivas”, de acordo com a análise de Bernardo Kucinski. Seriam elas o desejo das esquerdas de protagonizar transformações radicais, bem como a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaços para a livre expressão de ideias. “Em contraste com a complacência da grande imprensa para com a ditadura militar, os jornais alternativos cobravam com veemência as restaurações da democracia e do respeito aos direitos humanos e faziam a crítica do modelo econômico”, afirma Kucinski, ele próprio um dos jornalistas alternativos mais atuantes do período. O discurso triunfalista do governo era “desconstruído por outra narrativa”, como se diria hoje.

O RATO QUE RUGE

A conjuntura que fez nascer O Pasquim, com charges para ridicularizar o grotesco de generais sobrecarregados de medalhas e truculentos agentes da polícia, foi descrita por Luiz Carlos Maciel, jornalista e escritor pioneiro na divulgação da contracultura no Brasil. “Em 1969, estávamos mais ou menos ao deus-dará. O sonho tinha acabado, não se tinha o que fazer ou para onde ir, formava-se o vazio histórico e existencial onde medravam a luta clandestina e o desbunde”, resumiu Maciel em seu livro Anos 60. Ele manteve em O Pasquim a coluna “Underground”, responsável por popularizar expressões como “barato” e “curtir”, emblemáticas da juventude da época, que acabaram por se imortalizar.

Pensado como um jornal de um grupo de amigos, no qual todos os colaboradores podiam escrever o que bem entendessem, O Pasquim tornou-se o maior fenômeno editorial da imprensa brasileira. O número um trazia o lema “Aos amigos, tudo; aos inimigos, justiça”, ironia que desnuda a hipocrisia perene de um país condenado a mudar para manter intacta as relações de poder. Ainda na capa, um alerta jocoso: “É um semanário com autocrítica, planejado e executado só por jornalistas que se consideram geniais e que, como os donos de jornais não reconhecessem tal fato em termos financeiros, resolveram ser empresários”.

A edição inaugural trouxe desenhos dos cartunistas Claudius, Fortuna e Ziraldo, além do ratinho Sig, criação de Jaguar alusiva a Sigmund Freud; as famosas “Dicas de bares e restaurantes”, que seriam depois copiadas por toda a imprensa; um artigo lapidar de Millôr Fernandes sobre as dificuldades que a publicação enfrentaria, outro do compositor Chico Buarque de Holanda explicando por que torcia para o Fluminense; e uma entrevista com o colunista social Ibrahim Sued, a primeira das muitas em que o entrevistado era sabatinado coletivamente numa roda, com uísque correndo a rodo para soltar a língua de todos. A oralidade que revolucionou o jornalismo pátrio começou por acaso, de acordo com Jaguar, encarregado de transcrever do gravador tudo o que Sued dissera.

Quando leram o texto, Tarso de Castro e Sérgio Cabral, tarimbados jornalistas integrantes do grupo fundador, decretaram: “Tem de fazer o copidesque”. “Que diabo é isso?”, perguntou Jaguar, que só sabia desenhar e não deixou que se fizesse a adaptação para a “linguagem jornalística”. O cartunista fincou o pé, insistiu que estava ótimo e ganhou a parada, porque não dava mais tempo, estava na hora de o jornal rodar. Dedicado à memória de Sérgio Porto – o célebre Stanislaw Ponte Preta, morto em 1968 e que deixara órfã toda uma geração de humoristas por ele inspirada –, a tiragem do primeiro número de O Pasquim teve apenas 14 mil exemplares, esgotados em dois dias.

Depois de cinco meses, com o time de craques ainda mais reforçado pelo cartunista Henfil e seus fradinhos, pelos jornalistas Paulo Francis e Ivan Lessa e por colaboradores do naipe do compositor Caetano Veloso, do poeta Vinicius de Moraes e do cineasta Glauber Rocha, o jornal comemorava 100 mil exemplares vendidos. Alguns episódios explicam tanto o sucesso de O Pasquim, como a reação que provocou nos meios conservadores. As vendas estouraram a partir do número seis, cuja capa debochava da chegada dos norte-americanos à Lua, feito reverenciado pela grande imprensa.

O grande choque, porém, foi a entrevista antológica da atriz Leila Diniz, símbolo da revolução feminina por suas ideias e atitudes contra tabus e preconceitos, em defesa do amor livre e do prazer sexual. A fala desabrida, totalmente livre de autocensura e repleta de palavrões, foi contestada por um editorial de primeira página do jornal O Globo, acusando a existência de uma “esquerda pornográfica”, que deveria ser coibida.

O aparelho repressivo não demorou a mostrar seus dentes. A ditadura, então, baixou um decreto de censura prévia, assim justificada: “As publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes obedecem a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional”. A questão, entretanto, era outra. Ao superar a marca dos 200 mil exemplares vendidos e se tornar hegemônico entre os jovens da classe média, O Pasquim passou a ser visto pelas empresas gigantes do setor como um intruso nos mercados editorial e publicitário. Após a capa do número 40, dedicada a Dom Helder Câmara – arqui-inimigo do regime e candidato ao Prêmio Nobel da Paz por suas denúncias –, o semanário foi obrigado a submeter antecipadamente todas as matérias à Polícia Federal.

A tensão aumentara até o dia 1º de novembro de 1970, quando policiais do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) invadiram a redação e levaram quase toda a “patota”, como eles se autodesignavam, para uma temporada que durou dois meses em celas da Vila Militar. O pretexto para a prisão foi uma brincadeira feita com o quadro de Pedro Américo sobre o Grito da Independência. Na versão satirizada, Dom Pedro I grita, com a espada em punho: “Eu quero mocotó!!”. Escaparam da cadeia Millôr e Henfil, que continuaram a editar o jornal informando aos leitores, de maneira cifrada, que um “surto de gripe” atingira os demais integrantes da equipe. O estrago, porém, foi irreversível. De 180 mil exemplares, a tiragem caiu para 60 mil. A publicidade, que já claudicava pela pressão feita sobre os anunciantes, foi a zero. Embora ainda durasse, aos trancos e barrancos, mais 20 anos, O Pasquim não seria o mesmo.

SANHA DOS CENSORES

Se a tirania não suportava que rissem dela, muito menos admitia que lhe fizessem oposição aberta, como no caso do jornal semanal Opinião, lançado no fim de 1972 e mantido sob censura prévia durante mais de 200 edições até abril de 1977, quando deixou de circular. Órgão mais influente de toda a imprensa alternativa, responsável por projetar nacionalmente personalidades como Fernando Henrique Cardoso e os ex-ministros Luiz Carlos Bresser-Pereira e Francisco Weffort, Opinião chegou a produzir ao longo de sua existência o dobro das matérias efetivamente publicadas: das 10.548 páginas escritas pelos colaboradores, apenas 5.796 chegaram aos leitores. Para se ter uma ideia da sanha dos censores contra o semanário, até a coluna de xadrez chegou a ser cortada, porque o texto que falava sobre o ataque dos peões negros ao rei branco foi interpretado como “incentivo aos choques raciais e à luta de classes”.

Prisões e agressões físicas fizeram parte dos métodos para intimidar redatores e colaboradores, assim como a apreensão de várias edições, mesmo depois de censuradas. Impresso em papel um pouco melhor do que o de O Pasquim, com 24 páginas formato tabloide e ilustrado não por fotografias, mas apenas desenhos, Opinião tinha projeto gráfico do artista plástico Elifas Andreato, autor de capas de discos e cartazes célebres, ícone de uma geração que se valia da arte para resistir à violência da ditadura. Inicialmente, a principal característica visual, estampada com destaque na capa e nas páginas internas, era a caricatura, instrumento usado pela imprensa brasileira desde a época do Império, passando pela República Velha e por Getúlio Vargas, para fazer uma bem-humorada crítica da política e dos políticos.

Os militares, porém, não aceitavam a deformação caricatural de seus líderes ou aliados. A partir de 1975, o jornal foi proibido de publicar qualquer caricatura de autoridade nacional ou estrangeira, por inofensiva que fosse. Opinião foi fruto de um acordo entre o empresário nacionalista Fernando Gasparian, que financiava a publicação, e jovens jornalistas talentosos, liderados por Raimundo Pereira, que aceitavam trabalhar por salários inferiores aos do mercado em troca de autonomia editorial. Pioneira em levantar temas como meio ambiente e defesa do consumidor, a publicação fazia a crítica do “milagre econômico brasileiro”, que começava a fazer água em razão da crise do petróleo.

Assuntos apenas tangenciados pelos veículos tradicionais, como a dívida externa e a desigualdade na distribuição de renda, foram objetos de matérias que se tornaram as bandeiras do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) na vitória eleitoral de 1974. Outra função importante do jornal foi devolver o direito de falar aos intelectuais perseguidos e expurgados das universidades. Abordava também relevantes questões internacionais, como a Guerra do Vietnã, por meio de artigos traduzidos de publicações como o francês Le Monde e o britânico The Guardian. Sua circulação atingiu 38 mil exemplares, pouco menos que os 42 mil da revista Veja, na época ainda sem um sistema de assinaturas. Opinião, porém, nunca saiu do círculo mais intelectualizado de leitores, centrados nas classes A e B.

Por esta razão, para fazer um jornal mais popular e mais à esquerda do que admitia Gasparian, Raimundo Pereira e sua equipe idealizaram outra publicação, um jornal de propriedade coletiva dos jornalistas que o fizessem, financiado por uma grande campanha de arrecadação de fundos entre estes profissionais, estudantes e políticos de oposição. O primeiro exemplar de Movimento foi lançado em 7 de julho de 1975. Trazia na capa uma foto de objetos jogados sobre um trilho de trem, para ilustrar a “Cena Brasileira”, uma seção dedicada aos movimentos sociais. O primoroso texto inicial, sobre revoltas populares nos subúrbios cariocas, era da lavra do jornalista Aguinaldo Silva, hoje consagrado autor de novelas da TV Globo e que seria também o editor do primeiro jornal dedicado à comunidade homossexual no Brasil, o Lampião da Esquina. De acordo com Bernardo Kucisnki, o projeto gráfico de Movimento “assumia a estética do feio como manifesto político”.

Prejudicado também pela censura prévia imposta até 1978, suas charges e desenhos eram rudes. “Expressavam uma estética popular, em contraste com os traços aristocráticos do Opinião”, resume Kucinski, que também foi um de seus editores. Administrado profissionalmente por Sérgio Motta, mais tarde ministro das Comunicações, o semanário atraiu presos políticos que começavam a ser soltos e reforçavam a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita, uma das bandeiras da publicação. A outra, também sustentada inicialmente de maneira solitária pelo Movimento, foi a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. O jornal foi pioneiro, ainda, na montagem de um conselho editorial composto por personalidades de prestígio, com a finalidade de legitimar a linha e resistir aos arreganhos da repressão.

Dele faziam parte Fernando Henrique Cardoso, Audálio Dantas (então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo), o compositor Chico Buarque de Hollanda, o indigenista Orlando Villas-Bôas, entre outros. Deixou de circular em 1981, quando setores de extrema-direita desencadearam uma série de atentados contra as bancas que vendiam os jornais alternativos.

Herbert Carvalho Tiago Araujo
Herbert Carvalho Tiago Araujo