Personagem da bossa-nova e do Cinema Novo, seu talento artístico ultrapassou a música e os filmes. Dono de um legado de 17 álbuns gravados e de curtas e longas-metragens que dirigiu em 70 anos de carreira como cantor, compositor e cineasta, ele foi também ator de telenovela, escritor, poeta e pintor.
Compôs as famosas trilhas sonoras dos não menos célebres filmes de Glauber Rocha. Autêntico outsider, não se deixou capturar por um único movimento ou linguagem. Sua ligação com o povo brasileiro se tornou tão radical, que decidiu morar numa favela para melhor entender e expressar o sentimento popular.
Toda essa epopeia, porém, só é conhecida por um punhado de admiradores de Sérgio Ricardo. Para o grande público, ele será lembrado apenas por um episódio insólito, que marcou a era dos festivais de música popular na década de 1960: vaiado furiosamente por uma claque que o impedia de cantar “Beto bom de bola”, de sua autoria, ele quebrou o violão e o arremessou na direção do público.
Inspirada na história de Garrincha, a música falava de um craque à mercê dos interesses de cartolas do futebol. Isso em plena TV Record, então propriedade de Paulo Machado de Carvalho, dirigente da delegação brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962. Resultado: desclassificado da disputa do festival, passou a sofrer dupla perseguição, das censuras tanto da ditadura militar como dos chefões da mídia, que o baniram de suas emissoras.
João Mansur Lutfi – nome de batismo – nasceu em Marília (SP) em 1932, filho mais velho de um casal de imigrantes libaneses amantes da música. Sua mãe cantava canções árabes e brasileiras, acompanhada pelo pai, ao alaúde. Encaminhado ao conservatório local aos oito anos, tornou-se pianista. Para aperfeiçoar-se, chega ao Rio de Janeiro em 1952, onde fixa as raízes de sua vida e de sua arte.
No bairro ícone de Copacabana, numa boate do Posto 5, ainda se chamando João, assume, como pianista, a vaga de um certo Tom Jobim. Com o xará João Gilberto, aprende a tocar no violão a famosa batida que levará esses e outros talentosos brasileiros ao concerto do Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, quando a bossa-nova foi oficialmente apresentada ao mundo.
Antes disso, porém, o pianista – que agora já cantava e começara a compor – apresenta-se um dia na TV Tupi de São Paulo, onde o diretor Teófilo de Barros achou que ele “fotografava” bem. Ganhou um contrato como ator, com a condição de adotar o nome artístico de Sérgio Ricardo, escolhido por consenso entre os presentes. Um nome composto, como era moda, com todos os “erres da prosódia paulista”, como ele próprio explicaria em uma entrevista.
Sua ligação com o povo brasileiro tornou-se tão radical, que decidiu morar numa favela para melhor entender e expressar o sentimento popular
Quando a bossa-nova começa a aparecer em discos, um dos primeiros LPs foi A bossa romântica de Sérgio Ricardo. Paradoxalmente, ali já se dava o seu afastamento do movimento, por meio da música “Zelão”, um de seus maiores sucessos, fruto de uma preocupação social que o colocava como um estranho naquele ninho de barquinhos ao entardecer. Os versos a denunciar que “no fogo de um barracão, só se cozinha ilusão, restos que a feira deixou” constituem obra-prima de um gênero típico dos anos da contracultura: a canção de protesto.
No mesmo diapasão, surgem os primeiros filmes, feitos com o dinheiro que conseguiu juntar na bossa-nova: o curta-metragem Menino da calça branca, ambientado na favela carioca do Jacarezinho, e o longa Esse mundo é meu, estrelado por Antônio Pitanga e por ele mesmo, no papel de um operário de fábrica. Em ambos, a fotografia – com a “câmera na mão” – é de Dib Lutfi, seu irmão caçula.
Saiba mais em: A canção no tempo Vol. 2: 1958-1985 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, Editora 34
Além de musicar os próprios filmes, passou a compor para Glauber Rocha, deixando sua marca nos dois longas antológicos do diretor baiano. Fez, ao piano, a trilha de Terra em transe e, no estilo dos cantadores nordestinos, deu voz ao cangaceiro Corisco em Deus e o diabo na terra do sol. Em pleno século 21, emplacou no filme Bacurau, de Kléber Mendonça Filho, a canção “Bicho da noite”, originalmente composta para teatro.
Nos anos 1970, viveu dois momentos de confronto, com risco pessoal. Quando Dom Paulo Evaristo Arns rezou missa na Catedral da Sé pelo estudante assassinado Alexandre Vannucchi, Sérgio Ricardo estava lá, cantando a música intitulada “Calabouço”, cuja letra adverte: “Olho aberto, ouvido atento e a cabeça no lugar, cala a boca, moço”.
No Rio de Janeiro, passou a viver na favela do Vidigal, encabeçando a luta vitoriosa dos moradores contra a tentativa de remoção forçada, saga que contou em seu último filme, Bandeira de retalhos, disponível no YouTube, assim como os demais filmes de sua autoria. Dali, só saiu aos 88 anos para o Hospital Samaritano, onde morreu em julho deste ano, quando, após derrotar o covid-19, seu coração não resistiu. Um fim como o de Corisco: “Não me entrego a tenente, não me entrego a capitão. Eu me entrego só na morte, de parabelo na mão”.