Jô Soares, Reynaldo Gianecchini, Fernanda Torres e outros artistas relembram histórias, no aniversário da casa de espetáculos da FecomercioSP.
O espetáculo de teatro é único. Diferentemente do cinema ou da televisão, meios nos quais as cenas podem ser refeitas quantas vezes for necessário para que se obtenha o melhor resultado possível, no palco, tudo acontece ao vivo, aos olhos do espectador. Ainda que o elenco se mantenha ao longo da temporada, cada apresentação é um momento exclusivo, encenado com seus próprios méritos e percalços. Em uma inspirada definição, o escritor Ruy Castro, em crônica publicada no jornal Folha de S.Paulo, de 13 de setembro deste ano, diz: “Há quem prefira rodeios, shows de cantores sertanejos ou carreatas políticas. Para mim, poucas coisas engrandecem tanto a experiência humana quanto o teatro. É exercido por pessoas que, ao se despirem de si mesmas para encarnar outras, falam de cada um de nós na plateia. É assim desde os gregos, há mais de 2 mil anos, e continuará a ser pelos próximos 2 mil. Só precisa ser ao vivo, sujeito tanto a um ator hesitar numa fala como dizê-la de modo fabuloso, inigualável – e, nos dois casos, essa fala se dissipará assim que o ator acabar de dizê-la”.
A encenação no palco é, ao mesmo tempo, tanto a celebração do encanto do efêmero quanto a perpetuação de uma arte ancestral. O teatro é considerado pela classe artística como o trabalho mais puro ao qual pode se dedicar o artista da representação. E para celebrar os 15 anos, comemorados em 2020, de um dos grandes palcos da cidade de São Paulo – o Teatro Raul Cortez –, convidamos atrizes e atores, produtores, diretores, dramaturgos e outros profissionais que trabalharam ali para relembrar histórias vividas sob os holofotes, na coxia, no camarim ou na plateia. Nessa década e meia, aconteceram mais de 2 mil apresentações. Cada uma delas, singulares.
Com 513 lugares, o espaço foi inaugurado em 2005 com Misery, montagem com Luís Gustavo e Marisa Orth. Baseada na obra de Stephen King, o terror psicológico, no qual o pé do escritor é cortado pela fã obsessiva, foi dirigido pelo espanhol Ricard Reguant – que, à época do lançamento, declarou que sua escolha pelo teatro ocorreu em razão de algumas características pelas quais se tornaria um dos queridinhos da classe artística brasileira: conforto para elenco e público, além de serviços de qualidade.
“É um dos teatros onde eu mais gosto de me apresentar e de assistir. É muito aconchegante. Oferece estrutura técnica perfeita para fazermos um bom trabalho e criar a magia. Adoro o palco, os camarins e a plateia”, diz o ator Reynaldo Gianecchini, que estrelou, juntamente com Ricardo Tozzi, a peça Os guardas do Taj, que permaneceu em cartaz por um semestre entre 2017 e 2018. “Quando chegamos ao hall de entrada, nos deparamos com aquelas fotos do Raul Cortez, que nos dão alegria e a sensação de estar em um espaço sagrado. Tenho uma relação afetiva com o espaço.”
As imagens mencionadas por Gianecchini foram adicionadas ao lobby em 2007, quando a casa passou a se chamar “Teatro Raul Cortez”. A homenagem ao grande ator Raul Cortez (1932-2006) nasceu por intervenção do apresentador, humorista e dramaturgo Jô Soares, que sugeriu a mudança ao presidente da FecomercioSP, Abram Szjaman. E teve sua sugestão acatada. Jô relembra agora o episódio, ao falar sobre o aniversário de 15 anos do teatro. “Eu me ufano por ter convencido o Abram e a diretoria da Entidade a pôr esse nome no teatro. A FecomercioSP é uma instituição maravilhosa, mas nome de teatro, podendo ser de um grande ator, é sempre melhor”, afirma.
Jô Soares, ‘padrinho de batismo’ do Teatro Raul Cortez
A peça que seria levada ao palco do Raul Cortez naquele momento, para celebrar o novo nome, foi Às favas com os escrúpulos, criada por Juca de Oliveira, dirigida por Jô Soares e estrelada por Bibi Ferreira (1922-2019). “Para mim, foi uma alegria dupla: além de participar da homenagem a um dos maiores atores brasileiros de todos os tempos, tive a honra de escrever um texto encenado pela monumental Bibi”, diz Juca de Oliveira.
Jô Soares voltaria ao Raul Cortez em 2013, com a peça Três dias de chuva, na qual dirigiu o elenco encabeçado por Petrônio Gontijo, Carolina Ferraz e Otávio Martins. O texto do norte-americano Richard Greenberg foi traduzido e adaptado pelo próprio Jô.
Foram muitas as estrelas a pisar no palco do teatro. Entre elas, Marília Pêra (1943-2015), que participou do elenco e se envolveu na produção da comédia Doce deleite, de 2008, remontagem do texto estrelado por ela com Marco Nanini nos anos de 1980. “Fomos muito felizes nas apresentações no Raul Cortez, por sermos tão bem recebidos e, principalmente, por trabalhar com a maravilhosa e saudosa Marília Pêra”, relembra Eduardo Barata, produtor teatral.
A atriz Fernanda Montenegro, que atuou lado a lado com o próprio Raul Cortez em diversas ocasiões, subiria ao palco que leva o nome do amigo no monólogo Viver sem tempos mortos, em 2011, encarnando a escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986). Já sua filha, Fernanda Torres, atrairia multidões em uma das montagens paulistanas de A casa dos budas ditosos (2016), peça escrita por João Ubaldo Ribeiro, na qual a atriz vive uma libertina baiana sexagenária, que narra experiências sexuais.
Embora não se tenha a estatística precisa sobre o público de cada um dos espetáculos, a FecomercioSP estima que foram vendidos cerca de 100 mil ingressos nesses 15 anos de existência do teatro.
Outro desses grandes sucessos foi Forever young, musical que permaneceu em cartaz por três temporadas, entre 2017 e 2019. Jarbas Homem de Mello – ator, diretor e um dos protagonistas da peça – diz: “Ficamos muitos meses em cartaz, sempre com a casa lotada. Acabamos criando vínculos. Tenho muito carinho pelo teatro, por toda a equipe técnica, pela direção, pela FecomercioSP”.
Carinho é também a primeira palavra mencionada por Heloísa Périssé, quando instada a comentar sua passagem pela casa. “O Raul Cortez é um teatro que apoia o artista, que pensa na plateia, com cadeiras boas de sentar. Depois de atuar ali, você deseja que todos os teatros sejam iguais a ele”, diz a atriz, que atuou na comédia Loloucas (2019), dirigida por Otávio Muller. “Quando você tem a sorte de trabalhar num lugar como esse, pensa que valeu a pena ter investido na profissão.”
Quem trabalha no espaço quer voltar a fazê-lo. Foi assim com Odilon Wagner, ator, roteirista, produtor, diretor e dramaturgo, que montou dois espetáculos no Raul Cortez. Em um deles, viveu uma experiência peculiar: a peça Família muda-se (2006), escrita por ele, terminava com uma espécie de bazar de usados. “Ao fim da peça, o público era convidado a subir ao palco e podia comprar todos os itens do cenário, como ocorre com aquelas vendas ao estilo ‘família vende tudo’. As pessoas levavam discos, móveis, objetos”, recorda. Ele voltaria ao Raul Cortez em 2017, com a montagem de A última sessão, cujo elenco foi composto por atores com idades entre 75 e 85 anos de idade. “Tínhamos Laura Cardoso, Etty Fraser (1931-2018), Mirian Melo, Sônia Guedes, Gésio Amadeu, entre outros. Foi um sucesso estrondoso. Dirigir esse espetáculo foi uma das grandes alegrias da minha carreira.”
Na expectativa da volta das alegrias, seguem aqueles que torcem pela retomada, como a agente teatral Carmen Mello, que se declara “triste, porém, esperançosa” em relação às perspectivas de reabertura do teatro, que, como todas as demais casas de espetáculos, fechou as portas em março em razão da pandemia de covid-19. De acordo com Fábio Sena, produtor do Teatro Raul Cortez, a casa permanecerá fechada pelo menos até o fim de 2020. “Embora já exista a liberação para funcionamento dos teatros de São Paulo, o Raul Cortez não voltará com público presente neste ano”, afirma Sena. “Estamos verificando a possibilidade de abrigarmos apresentações para serem veiculadas no formato online.”
Raul Cortez: a novela Água Viva (1980) o tornaria conhecido nacionalmente
Ainda de acordo com Sena, mesmo que não exista uma data marcada para a volta à atividade, a administração do Teatro Raul Cortez já estabeleceu planos de ação, para seguir os protocolos sanitários e de fluxo de público, com objetivo de manter o adequado distanciamento social (indicações de poltronas nas quais não se poderá sentar, acesso a banheiros, entre outros detalhes). “Não raro somos citados em razão do conforto: o teatro oferece comodidades para que a experiência da plateia seja sempre a melhor possível. E assim continuaremos quando reabrirmos.”
O paulistano Raul Christiano Machado Pinheiro de Amorim Cortez atuou em 66 peças teatrais, dividindo palco com outros grandes, como Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho; também sob a direção de Antunes Filho e José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina, entre outros. Ao longo da carreira, fez ainda 20 telenovelas (nas TVs Excelsior, Tupi, Bandeirantes e Globo).
O sucesso da novela Água viva (1980) o faria conhecido nacionalmente. Na trama, escrita por Gilberto Braga, Cortez viveu o cirurgião plástico Miguel Fragonard, personagem previsto para desaparecer no segundo mês de exibição. No entanto, o trabalho do ator foi tão cativante que os planos foram alterados. “Era para eu morrer por volta do 30º capítulo. Contudo, o papel foi absolutamente extraordinário, e eu só morri antes do fim da novela”, narrou Cortez. A declaração está registrada na plataforma Memória Globo. Ele atuaria ainda em 13 minisséries e 28 filmes. Recebeu vários prêmios, entre eles cinco Molière – a mais importante premiação do teatro brasileiro.
O ator morreu no dia 18 de julho de 2006, aos 73 anos, em São Paulo. Ele foi casado com a atriz Célia Helena, com quem teve a filha Lígia Cortez, também atriz.