Da coleção mantida pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), com mais de 30 mil preciosos itens da centenária Semana de Arte Moderna de 1922, podemos encontrar até uma playlist das canções executadas no evento, hoje disponíveis nos serviços de streaming, além da reprodução de poemas declamados no palco. Elencamos, a seguir, indicações de obras que oferecem um pouco do sabor do surgimento e da explosão do movimento modernista no Brasil.
O Homem amarelo não choca mais. Pintado em 1915 por Anita Malfatti (1889-1964), o quadro de 51 por 61 centímetros foi um dos mais marcantes da exposição de 1917, uma vez que precipitou a crítica de Monteiro Lobato (1882-1948), juntando, de certa forma, os modernistas – e, claro, não poderia faltar na exposição da Semana de 1922.
Conforme descreve Aracy Amaral em seu livro Artes plásticas na Semana de 1922, o quadro causou certa ojeriza ao público, que via o personagem retratado como um doente em uma clínica especializada em procedimento de lavagem estomacal. A esta altura, a tela já havia sido adquirida por Mário de Andrade (1893-1945), aliás.
Desnecessário dizer que a peça se tornou uma das mais importantes da história da arte brasileira. Hoje, pertence à chamada “coleção Mário de Andrade”, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).
Com cerca de 30 mil documentos, o acervo mantido pela universidade paulista guarda outros itens importantes da Semana de 1922. Da própria Malfatti, por exemplo, integra a galeria A estudante russa e O japonês, outros icônicos exemplos das 20 obras assinadas pela artista que constam do catálogo da mostra.
Segundo Aracy, entretanto, o catálogo eternizou imprecisões sobre o que foi e o que não foi, de fato, parte da Semana de 1922, dificultando cravar com cem por cento de certeza o que exatamente o público viu naquele mês de fevereiro. “Este catálogo, contudo, não é registro definitivo da exposição, pois que Anita Malfatti, em depoimento pessoal posterior […] diria que nem todos os artistas ali estavam representados”, diz a pesquisadora, em seu livro.
O escultor Victor Brecheret (1894-1955), cuja obra pública marca a paisagem paulistana – quem não conhece o imponente Monumento às Bandeiras, para ficar em um só exemplo? –, embora não tenha comparecido pessoalmente ao evento, pois estava em uma temporada de estudos na Europa, cedeu 12 obras. Uma das mais famosas, Cabeça de Cristo, também pertence hoje ao IEB.
Daisy, outra de suas esculturas, hoje integra o acervo do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Soror dolorosa, por sua vez, faz parte da coleção da Casa Guilherme de Almeida.
De Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), Retrato de Ronald de Carvalho pertence ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio).
Entretanto, boa parte do que foi visto na Semana de 1922 atualmente faz parte de coleções particulares – e raras vezes o público pode apreciá-las. É o caso do belíssimo A sombra, da esquecida Zina Aita (1900-1967). E também de Cabeças de negras, de Rego Monteiro; A mulher de cabelos verdes, de Malfatti; Boêmios, de Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976); entre outros.
“No palco, de chinelos devido a uma crise de gota, Villa-Lobos arrancou aplausos tímidos”, conta Marcia Camargos em seu livro Semana de 22: entre vaias e aplausos. O maestro Heitor Villa-Lobos (1887-1959) apresentou-se nas três noitadas. Tocou Segunda sonata, Segundo trio, Valsa mística, Rondante, A fiandeira e danças africanas, O ginente do Pierrozinho, Festim pagão, Solidão, Cascavel, Terceiro quarteto, Terceiro trio, Historietas: Lune de Octobre/Voilà La Vie/Je Vis Sans Retard, Car Vite S’Écoule La Vie, Segunda sonata, Camponesa canteira e Num berço encantado. Não é difícil encontrar gravações das composições, seja em serviços de streaming, seja em discos.
Outro exemplo de música executada no evento, e que pode ser ouvida facilmente, é A dança dos gnomos, composição do húngaro Franz Liszt tocada no Municipal por Guiomar Novaes (1894-1979).
O que foi declamado – e, geralmente, vaiado pela plateia – está disponível nas livrarias. Oswald de Andrade (1890-1954) leu um capítulo do seu então inédito romance Os condenados. Subiu ao palco carregando, com suas indefectíveis mãos gordas, tiras datilografadas da obra. Há uma edição recente do livro, publicada pela Editora Globo.
O poeta Manuel Bandeira (1886-1968) não esteve pessoalmente no evento, mas seu poema “Os sapos” foi lido. Os versos constam do livro Carnaval (a Global tem uma edição em circulação), mas também integram diversas antologias.
Mário de Andrade provocou o público lendo seu “Ode ao burguês”, que seria publicado em Pauliceia desvairada, um clássico da poesia brasileira, cuja primeira edição saiu justamente naquele ano. No mercado, existem diversas edições disponíveis à venda.
OS SAPOS
Manuel Bandeira
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— Meu pai foi à guerra!
— Não foi! — Foi! — Não foi!
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos!
O meu verso é bom
Frumento sem joio
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas . . .
Urra o sapo-boi:
— Meu pai foi rei — Foi!
— Não foi! — Foi! — Não foi!
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
— A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
— Sei! — Não sabe! — Sabe!.
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;
Lá, fugindo ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é.
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio.
ODE AO BURGUÊS
Mário de Andrade
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco a pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar… — Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”
Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!…