Belle Époque à carioca

21 de agosto de 2021

João do Rio (1881-1921) fez da crônica jornalística uma contemplação a glórias e misérias do Brasil republicano. Ele percorria as ruas do Rio de Janeiro para reter a “cosmópolis num caleidoscópio”. A cidade foi palco das perambulações do dândi para quem o hábito de flanar definia um estilo de vida.

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Há cem anos, um enterro reuniu mais de 100 mil pessoas pelas ruas do Rio de Janeiro, cidade que, em 1920, estava entre as dez metrópoles do mundo com mais de 1 milhão de habitantes – o dobro da população de São Paulo, na época.

O nome completo do morto exigia fôlego: João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto. Os íntimos, inclusive os desafetos, o chamavam de Paulo Barreto. Para seus milhares de leitores, porém, quem desaparecia aos 39 anos de idade era João do Rio, o cronista que retratara A alma encantadora das ruas, de acordo com o título de seu mais famoso livro.

De origem humilde, barrado pelo Barão do Rio Branco na carreira diplomática por ser mulato, este jornalista, escritor e dramaturgo, que se tornou membro da Academia Brasileira de Letras (após três tentativas), escolheu o seu principal pseudônimo inspirado no “Jean de Paris”, cronista do Le Figaro.

Além de João do Rio, assinava seus textos também como Joe, José Antônio José, Claude e Máscara Negra. Tinha até um heterônimo com vida própria, como os de Fernando Pessoa, Godofredo de Alencar, na boca de quem explicitou, com seu estilo sarcástico característico, a opção de trazer para as páginas dos jornais tanto o brilho dos palácios como o esgoto das ruas – “Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha. Porque são imprevistos e se parecem pela coragem dos recursos e a ausência de escrúpulos”.

Em plena Belle Époque, na capital que a República herdou do Império e manteve com a mesma função, durante a transição do século 19 para o 20, ainda não existiam meios eletrônicos de comunicação. A informação chegava por jornais, revistas e livros. O Rio dos anos 1920 nunca teve menos do que 15 jornais diários em circulação simultânea, o que fazia do jornalismo a porta de entrada para o mundo das letras.

“Eu amo a rua”. A frase que abre a coletânea que o autor intitulou A alma encantadora das ruas. Por suas páginas, desfilam ambulantes, estivadores, mendigos, prostitutas e viciados com os quais João do Rio se depara ao “flanar”, verbo que ele incorporou à língua portuguesa e definia como sendo “a distinção de perambular com inteligência”.

A Cidade do Rio, Gazeta de Notícias, A Notícia e O País foram alguns dos jornais nos quais João do Rio publicou originalmente, ao longo de 20 anos, reportagens, crônicas, contos e romances – editados, depois, em forma de livro. Ao morrer, já era dono de seu próprio jornal, A Pátria.

Na pioneira série de reportagens intitulada “As religiões do Rio”, publicada em 1904 na Gazeta de Notícias, ele revelou a existência de cultos africanos na região da cidade conhecida como “pequena África”, em torno da antiga Praça Onze. Foi o primeiro a citar a mãe de santo baiana conhecida como “tia Ciata”, em cuja casa nasceu o samba em sua forma urbana. A curiosidade do público foi tamanha que a série, transformada em livro, vendeu mais de 8 mil exemplares, autêntica proeza num país em que o analfabetismo atingia 80% da população.

“Eu amo a rua.” A frase que abre a primeira crônica dá o tom da caleidoscópica coletânea que o autor intitulou A alma encantadora das ruas, obra lançada em 1908 e até hoje em catálogo com sucessivas reedições. Por suas páginas, desfilam ambulantes, estivadores, mendigos, prostitutas e viciados com os quais João do Rio se depara ao “flanar”, verbo que ele incorporou à língua portuguesa e definia como sendo “a distinção de perambular com inteligência”.

Gordo, dândi, epicurista, comilão e flâneur, o escritor foi também o primeiro homossexual assumido com reconhecimento e prestígio no Brasil, o que lhe rendeu ataques dos intelectuais conservadores. Habitué encasacado dos saraus mais elegantes, seu comportamento e figurino faziam dele uma versão cabocla do escritor e dramaturgo inglês Oscar Wilde, ídolo que traduziu e mimetizava. Nada disso impediu, porém, que fosse apontado como amante da bailarina americana Isadora Duncan, a quem ciceroneou durante a estada dela no Rio, em 1916.

Autor da mais completa cobertura da inauguração do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1909, fez inúmeras viagens à Europa. Cosmopolita, sentia-se em casa tanto em Paris como em Lisboa, cidades onde editava seus livros. Repórter certo no lugar e na hora certa, em 1919 cobriu a Conferência de Paz em Versalhes e esteve também na Alemanha, Itália, Egito, Palestina e Turquia.   

Das inúmeras polêmicas em que se envolveu, duas merecem registro. Autor de peças teatrais destacadas como a comédia A bela Madame Vargas, encenada com sucesso até em Portugal, João do Rio/Paulo Barreto foi o fundador e primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). À custa de pancadaria e intervenção da polícia, conseguiu que donos de teatro passassem a pagar direitos autorais, conquista que ampliou o seu prestígio.

Ao lançar seu jornal A Pátria, em setembro de 1920, viu-se em meio a outra disputa, entre nacionalistas xenófobos e a colônia portuguesa radicada no Rio, que representava não menos do que 25% da população da cidade. Isso porque uma lei do presidente Epitácio Pessoa determinava a nacionalização da pesca. Os inúmeros pescadores portugueses tinham de escolher entre se naturalizar ou desistir do ofício.

A estreita ligação que mantinha com Portugal, ao ponto de ser membro da Academia de Ciências de Lisboa, levou João do Rio a colocar A Pátria em defesa dos lusitanos, o que lhe valeu uma agressão covarde perpetrada por cinco oficiais da Marinha. A surra, ocorrida dias antes do ataque fulminante que o matou (enfarte ou derrame, não se sabe ao certo), pode ter abalado a saúde fragilizada por uma vida de excessos.

Autor de peças teatrais como a comédia A bela Madame Vargas, encenada com sucesso até em Portugal, João do Rio foi o fundador e primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). À custa de pancadaria e intervenção da polícia, conseguiu que os donos de teatro passassem a pagar direitos autorais, conquista que ampliou o seu prestígio.

Numa época em que o bairro de Ipanema não passava de imenso areal, o jornalista recebeu de um incorporador imobiliário dois terrenos como pagamento por artigos que escreveu louvando o local – e para lá se mudou com a mãe. Na noite de 23 de junho de 1921, deslocava-se da redação de seu jornal, no centro da cidade, para a sua residência à beira-mar, quando de repente se sentiu mal, na altura do bairro do Catete. Não houve tempo para o motorista de táxi voltar com um copo d’água: João do Rio estava inerte. Morreu como viveu, na rua.    

Para saber mais: Metrópole à beira-mar. O Rio moderno dos anos 20. Ruy Castro. Companhias das Letras. A alma encantadora das ruas, João do Rio, “Coleção A obra-prima de cada autor”, Martin Claret.

Herbert Carvalho Paula Seco
Herbert Carvalho Paula Seco