Conhecida como a grande dama do teatro nacional, Cacilda Becker teria completado cem anos em 2021. Ela foi a primeira atriz profissionalizada no Brasil. À ocasião de sua morte, Paulo Francis a descreveu como “um monumento de trabalho e audácia no teatro”, cujo gênio, para o crítico, foi “inigualável”.
Nascida em 6 de abril de 1921 em Pirassununga (SP), ela subiu ao palco pela primeira vez aos nove anos. Queria ser bailarina, mas a vida levou-a pelo rumo paralelo de uma vitoriosa carreira de atriz, encerrada no dia 6 de maio de 1969, quando passou mal no teatro batizado com seu nome – Cacilda Becker –, no centro de São Paulo. “Acho que estou tendo um derrame”, teve tempo de dizer ao marido Walmor Chagas, também ator. Aos 48 anos, a grande dama do teatro brasileiro deixava a cena para entrar na história de uma arte que ela lutou, como ninguém, para transformar em profissão digna.
Violência e pobreza marcaram a sua infância. Recém-casado, Edmundo Yáconis, caixeiro-viajante de pai grego e mãe italiana, já dava surra de cinta na mulher, Alzira Becker, professora primária descendente de alemães. Filha primogênita do casal, Cacilda Becker Yaconis se tornou o “homem da casa” quando o pai abandonou a família – que, além dela e da mãe, compunha-se de mais duas meninas, nascidas em anos sucessivos, Dirce e Cleyde. Com o nome de Cleyde Yáconis, a irmã caçula também brilharia nos palcos como atriz.
“Mamãe lecionava em escolas rurais. Durante os primeiros cinco anos da minha vida, não fixávamos residência. Acredito que este fato tenha trazido para o meu trabalho uma riqueza de contatos com gente e com coisas constantemente diferentes”, relembrou Cacilda, em depoimento de 1967 para o Museu da Imagem e do Som (MIS).
Quando Alzira conseguiu vaga em uma escola de São Vicente (SP), e a família se mudou para a vizinha Santos, na década de 1930, o destino de Cidinha – apelido de família – começou a mudar. Sem recursos para o estudo do balé clássico, espelhou-se na revolucionária bailarina estadunidense Isadora Duncan para criar intuitivamente coreografias que impressionaram a direção do Colégio José Bonifácio, de Santos, a ponto de concederem a ela e às irmãs bolsas de estudo integral.
A dança foi o primeiro passo para a superação das privações. “Passamos fome e moramos em contêiner. Fomos humilhadas e sofremos, o que nos deu força e paixão”, conta a irmã Cleyde, em depoimento para o livro Alguma coisa acontece (Editora Senac São Paulo).
As apresentações de Cacilda logo atraíram outros olhares que resultaram em noivado efêmero com o artista plástico Flávio de Carvalho (20 anos mais velho do que ela) e na amizade com o escritor e dramaturgo Miroel Silveira, que lhe sugeriu a carreira teatral para evitar o desperdício de um talento. “Você vai dançar sozinha a vida toda”, teria advertido.
Nas primeiras décadas do século 20, no Brasil, o panorama teatral, dominado por companhias europeias que aqui se apresentavam em idioma estrangeiro, antes ou depois de ir a Buenos Aires, resumia-se ao Rio de Janeiro e a São Paulo – num distante segundo lugar, obtido graças ao público formado pela imigração italiana.
Artistas protestam contra a Ditadura Militar – Tônia Carreiro, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell e Cacilda Becker
Apenas nos anos 1940 surgiria o moderno teatro brasileiro, capaz de se igualar aos melhores do mundo. Foram protagonistas deste espetáculo: Ziembinski, o diretor polonês radicado no País; o cenógrafo Santa Rosa; o diplomata e animador cultural Paschoal Carlos Magno; o dramaturgo Nelson Rodrigues; e atores e atrizes como Sérgio Cardoso e Cacilda Becker.
Numa época em que as poucas atrizes brasileiras eram cadastradas pela polícia juntamente com as prostitutas, ir ao Rio de Janeiro para estrear no Teatro do Estudante (criação de Carlos Magno) equivalia a um salto no escuro. A peça medíocre de autor insignificante – Altitude 3.200, de Julien Luchaire – também não ajudava, mas foi no papel de uma garota coquete que Cacilda Becker, aos 20 anos, subiu ao palco pela primeira vez como atriz dramática. Notada por um crítico do jornal carioca A Noite, o teatro já estava no seu sangue.
Na primeira fase da carreira, entre 1943 e 1948, atua no Grupo Universitário de Teatro, de Décio de Almeida Prado, e na histórica trupe Os Comediantes, sob a direção de Ziembinski, participando, inclusive, em 1946, da remontagem de Vestido de noiva, a revolucionária peça de Nelson Rodrigues. Apesar da beleza física, teve de enfrentar limitações para se impor na profissão: pesava apenas 45 quilos e sua voz era arfante, de fôlego curto.
Longe dos palcos, travou longa batalha judicial pela guarda do filho, Luiz Carlos (Cuca), após se desquitar do primeiro marido, o jornalista Tito Fleury. Em carta de 1950, quando ainda não se falava em feminismo, o seu posicionamento sobre a questão soa atual: “Os casamentos no Brasil estão ocultos debaixo de covarde hipocrisia, em virtude de a educação masculina ser a mesma do século 19, quando as mulheres, nesta terra, eram analfabetas, incultas, sem ideais e sem ideias. Homens e mulheres são diferentes na sensibilidade, mas iguais nos sonhos e nos direitos humanos. Não há ser superior”.
Esta visão contribuiu para que suas duas atuações mais premiadas e destacadas pela crítica fossem de papéis masculinos. O primeiro foi o papel-título da peça Pega-Fogo, dirigida por Ziembinski na fase áurea do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), célebre companhia e casa teatral paulistana que teve em Cacilda Becker um de seus esteios. Para fazer o imortal menino de cabelos vermelhos, ela enfaixava a região dos seios com tiras de esparadrapo. “Depois de uma semana, a pele saiu e ficou carne viva”, contou o diretor.
O segundo foi a personagem Estragon, de Esperando Godot, peça derradeira na qual contracenava com Walmor quando teve a fatal ruptura de aneurisma. Para o crítico Sábato Magaldi, porém, nem Pega-Fogo, nem a figura frágil, desajeitada e chapliniana de Estragon, com seu nariz de palhaço, são homens. O teatro nos mostra que sexo ou idade pouco importam quando se trata de seres humanos sensíveis e sofridos, vítimas de agressão e angústia.
Na defesa da liberdade de expressão artística contra a censura, assumiu a presidência da Comissão Estadual de Teatro em São Paulo, no tumultuado ano de 1968, e por diversas vezes esteve no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para “pedir à Polícia Política que não corte as asas da gente moça”. Era, sem dúvida, um “espírito indômito”, como ela própria se classificava.