Nascido no Recife, filho de um usineiro que perdeu tudo especulando com preços do açúcar, tornou-se um dos principais cronistas dos Anos Dourados nas décadas de 1950 e 1960
Um dos principais cronistas dos Anos Dourados no Brasil e compositor considerado o rei do samba-canção na década de 1950, Antônio Maria Araújo de Morais completaria um século de existência em 17 de março de 2021 – se não tivesse sido fulminado, muito antes disso, por um enfarte numa calçada de Copacabana, o icônico bairro do Rio de Janeiro que ajudou a torná-lo famoso. Meses antes de morrer, no fatídico ano de 1964, ele próprio se definiu nas páginas de O Jornal: “Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria, brasileiro, 43 anos, cardisplicente (isto é: homem que desdenha do próprio coração). Profissão: Esperança”.
Nascido no Recife, filho de um usineiro que perdeu tudo especulando com os preços do açúcar, ele narrou assim à desdita da família: “Amanhecemos pobres, nossos automóveis foram ser carros de praça, o veraneio da praia ficou para quando Deus desse bom tempo”. Começou a vida profissional como locutor esportivo na Rádio Clube de Pernambuco, atividade que manteria no Rio de Janeiro até a trágica derrota do Brasil para o Uruguai, em pleno Maracanã, na final da Copa do Mundo de 1950. “Perdi o gosto do futebol naquele gol do Ghigia”, dizia, sobre o jogador que selou o placar adverso de 2 a 1.
Ao chegar à então capital da República, aos 19 anos, Maria já exibia seus 120 quilos, distribuídos por 1,80 metro de altura. Os sonhos e a primeira morada carioca foram compartilhados com dois conterrâneos que se tornariam célebres: o compositor Fernando Lobo (autor de “Chuvas de verão” e pai de Edu Lobo) e o apresentador Abelardo Barbosa, o Chacrinha.
No fim da primeira metade do século, 20 o Rio de Janeiro sofrera uma mudança importante. A proibição dos cassinos, em 1946, faz a vida noturna da cidade se concentrar em Copacabana, onde Antônio Maria tinha cadeira cativa em boates como a Vogue e bares como o Maxim’s, pontos de encontro de boêmios, artistas, intelectuais e toda a turma do chamado Café Society.
Foi principalmente neste circuito que Maria colheu a matéria-prima para as cerca de 3 mil crônicas que escreveu entre 1950 e 1964, publicadas em diversos jornais cariocas nos quais mantinha colunas com títulos como estes: “A noite é grande”, “Mesa de pista”, “Jornal de Antônio Maria” e “Romance policial de Copacabana”. Nos textos, além de ser o criador da expressão “mal-amada”, usada pelo jornal Última Hora para ironizar as seguidoras do então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, ele deixou frases e aforismos que ganharam vida própria:gente má dorme em posição de sentido;
2. angústia é o resultado da perda de intimidade de um homem consigo mesmo;
3. a única vantagem da solidão é poder entrar no banheiro e deixar a porta aberta;
4. a mulher é o meu espetáculo predileto.
Com pauta livre, escrevia sobre temas que lhe eram caros: música, perfis, noite, política, Recife, Rio, mulheres, amor… Seu biógrafo, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, reuniu 47 crônicas que tratam exclusivamente do encontro entre homem e mulher no livro Benditas sejam as moças.
Maria teria pertencido ao fechado clube dos cronistas que se dedicaram monogamicamente ao gênero, como Rubem Braga e Fernando Sabino, se não tivesse sido também um talentoso compositor de obras-primas da música popular. O ritmo bate como samba, a melodia é de canção e a letra ecoa o eterno tema da desilusão amorosa. Das 62 músicas que deixou gravadas, os maiores êxitos seguem essa fórmula, como “Menino grande” e “Ninguém me ama”, sucessos na voz de Nora Ney, cantora que popularizou os sambas-canção de fossa da lavra de Antônio Maria. Foi também autor da letra de “Manhã de carnaval”, melodia de Luiz Bonfá que ganhou o mundo por ter se tornado a trilha sonora do filme vencedor do Oscar Orfeu do Carnaval, do cineasta francês Marcel Camus. “O frevo n° 1 do Recife” e a “Valsa de uma cidade”, dedicada ao Rio de Janeiro, foram as homenagens musicais aos lugares onde viveu.
Embora casado com a pernambucana Maria Gonçalves Ferreira, com quem tinha dois filhos, Antônio Maria foi amante das mais lindas mulheres do Rio de Janeiro de seu tempo. Como em tudo o que fazia, não tinha limites: comia demais, bebia demais, amava demais. Compensava a aparência desleixada como o mais espirituoso dos presentes nas casas noturnas que frequentava. Foi assim que seduziu Danuza Leão, mito na sociedade carioca e modelo da mulher moderna, então casada com Samuel Wainer, dono da Última Hora, que negligenciava a esposa para se dedicar exclusivamente ao único jornal que apoiou os presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Eram tempos de intensa disputa política, mas civilizada, como revela este diálogo de Maria como entrevistador de televisão, mais uma de suas facetas. Ao perguntar à lacerdista Sandra Cavalcanti se ela era uma mal-amada, ouviu a seguinte resposta: “Posso até ser, mas não fui eu que fiz aquela música ‘Ninguém me ama’ ”.