Por meio da ironia e da sátira, Millôr Fernandes — escritor, jornalista, desenhista, dramaturgo, tradutor e, sobretudo, humorista — fustigou os poderosos a ponto de ser perseguido e censurado durante os “anos de chumbo”.
Tudo começou com a grafia duvidosa de um cartorário, nos tempos em que os registros eram feitos à mão. Na cópia de uma certidão de nascimento, ao escrever “Milton”, o funcionário escorregou o traço do “t” (transformado num segundo “l”) e formou uma espécie de acento circunflexo sobre o “o”. Para completar, o “n” tinha aparência de “r”.
Foi o que bastou para Milton Viola Fernandes, filho do imigrante espanhol Francisco Fernandes e da brasileira Maria Viola Fernandes, se tornar Millôr Fernandes, escritor, jornalista, desenhista, dramaturgo, tradutor e, sobretudo, humorista — que, por meio da ironia e da sátira, fustigou os poderosos a ponto de ser perseguido e censurado durante os “anos de chumbo”.
Um dos pilares de O Pasquim, veículo de maior destaque da imprensa alternativa durante a ditadura militar, figurou entre os principais intelectuais brasileiros no século 20, apesar de ter cursado apenas a “Universidade do Meier”, como se referia ao grupo escolar que frequentou no subúrbio carioca em que nasceu, no dia 16 de agosto de 1923.
Órfão de pai e mãe aos dez anos, fascina-se pelas histórias em quadrinhos que chegam ao Brasil, como as de Flash Gordon, que copiava milimetricamente. Em 1934, publica no periódico O Jornal o primeiro desenho, pelo qual recebe a quantia de 10 mil réis. Na cronologia da sua iniciação profissional, a imagem precede a palavra — que virá logo em seguida.
Levado por um tio, responsável pela área gráfica da revista O Cruzeiro, trabalha como contínuo na publicação que se tornaria o carro-chefe dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Circulando por oficinas, laboratórios, diagramação e redação, Millôr vivencia a prática daquilo que aprendia no Liceu de Artes e Ofícios, na capital carioca, onde estudou entre 1938 e 1942, sem chegar a concluir o curso.
Autodidata convicto, passou a traduzir para o português histórias em quadrinho originalmente concebidas em inglês, idioma que aprendeu apenas com a ajuda de livros e dicionários. Certo dia, a ausência de um colaborador lhe dá oportunidade de preencher as páginas em branco com aquilo que já vivia fazendo: frases, versos, tiradas inteligentes e engraçadas.
O sucesso foi tanto que lhe garantiu, além do ordenado triplicado, uma coluna fixa assinada com o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogo, versão humorística da fusão entre as artes plásticas de Van Gogh e a filosofia de Emmanuel Kant.
Em 1945, a seção Pif-Paf, em parceria com o cartunista Péricles, confere prestígio nacional a Millôr e contribui para catapultar O Cruzeiro de uma tiragem de 11 mil para 750 mil exemplares, marca jamais alcançada por qualquer outra publicação do gênero no País.
Com pouco mais de 20 anos, já era o maior salário da imprensa brasileira, o que lhe permitiu comprar, na década de 1950, a famosa cobertura na Avenida Vieira Souto, em Ipanema, onde passaria o resto da vida. Para acrescentar um toque atlético ao perfil de pensador, o menino suburbano que chega às areias da zona sul carioca se torna praticante de frescobol, versão lúdica não competitiva do tênis, da qual se orgulha de ser um dos criadores.
No início dos anos 1960, protagoniza grande escândalo ao publicar em O Cruzeiro uma versão hilária e iconoclasta do Gênesis bíblico, intitulada A verdadeira história do paraíso. Em episódio insólito, a revista estampou, na mesma edição, um editorial que acusava o autor de ter inserido textos e desenhos (dez páginas a cores!) sem o conhecimento da direção. Por sua pusilânime rendição à intolerância religiosa, os Diários Associados foram condenados pela Justiça a reparar o dano moral causado a Millôr, que contou ainda com um jantar de desagravo ao qual compareceram duas centenas de jornalistas e escritores, além de diretores de todos os outros principais veículos de comunicação do País.
Em 1964, tenta escapar do controle dos patrões transformando Pif-Paf num periódico humorístico autônomo, mas o obstáculo agora é outro, como adverte o texto posteriormente incluso na peça de sua autoria Liberdade, liberdade: “Se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, em breve estaremos caindo numa democracia”. Ato contínuo, a publicação é fechada pela censura do regime militar e dura apenas oito números — o suficiente, porém, para assinalar o início da imprensa alternativa.
Entre 1969 e 1975, participa ativamente de O Pasquim, semanário carioca que confrontou a ditadura e tirou o paletó e a gravata do jornalismo brasileiro. Em texto publicado em junho de 1969, lança uma advertência: “Nós, os humoristas, temos bastante importância para ser presos e nenhuma para ser soltos”. A profecia acaba se cumprindo em 1970. Em uma paródia do quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, D. Pedro I diz: “Eu quero é mocotó”. A fúria dos militares é imediata. Millôr é um dos poucos da equipe que escapa da prisão e consegue editar o jornal durante dois meses, tempo que dura a “gripe” dos colegas.
Em permamente litígio com empregadores como o Jornal do Brasil e a revista Veja — por questões trabalhistas ou por não aceitar a mínima interferência na sua liberdade criativa —, passou pelos principais órgãos da mídia até lançar, no ano 2000, o site Millôr Online, iniciativa pioneira na internet brasileira.
Suas críticas cáusticas às instituições e ideologias provocaram reações inflamadas dos alvos que atingia como “livre-atirador”. Considerado “subversivo”, por um lado do espectro político, e “reacionário” pelo outro, angariou o ódio de ativistas com uma célebre provocação: “O melhor movimento feminino ainda é o dos quadris”.
O livro Millôr Definitivo — A bíblia do caos (L&PM, 2002) reuniu 5.142 frases de seu “livre pensar”, assim definido: “Não existe pensador católico, nem marxista. Existe pensador. Preso a nada, que pensa a todo risco”.
Alguns desses aforismos continuam bem atuais ou são atemporais:
Millôr Fernandes morreu no seu apartamento no dia 27 de março de 2012, aos 88 anos. Deixou cerca de 40 livros de prosa, poemas e haicais, uma dezena de peças de teatro de autoria própria e mais de 70 traduções, além de um acervo pictórico de 7 mil desenhos e aquarelas, sob a guarda do Instituto Moreira Salles (IMS).
Desde 2013, a mais famosa praia brasileira exibe um banco panorâmico ladeado pela silhueta de Millôr, autor destes versos: “Em Ipanema/A diferença é profunda/Em conhecer de vista/E conhecer de bunda”.