Operário autodidata que aprendeu a desenhar antes de se alfabetizar, Elifas Andreato, morto em São Paulo no dia 29 de março deste ano, era dono de um traço poético com profundo sentido social. Características de uma geração que combateu a ditadura militar por meio da arte.
“Tudo é desenho”, dizia o autor de capas antológicas de discos, cenários e cartazes que marcaram a vida brasileira e ilustraram as últimas décadas de nossa história. Principal artista gráfico dos Anos de Chumbo, não é exagero dizer que foi parceiro de Chico Buarque, Martinho da Vila, Vinicius de Moraes, Paulinho da Viola, Cartola, Noel Rosa e gente da mesma estirpe, como afirma o jornalista e cartunista Gilberto Maringoni. “As artes gráficas dos elepês – algo lamentavelmente tornado obsoleto pelo streaming – estavam tão entrelaçadas às músicas a ponto de se poder afirmar que Elifas foi um dos poucos desenhistas capazes de transformar lápis e pincel em instrumentos musicais.”
A primeira obra de arte em forma de capa foi a do disco Nervos de Aço, de Paulinho da Viola, lançado em 1973. “Uma noite, em sua casa, ele pegou o violão e cantou ‘Nervos de aço’, de Lupicínio Rodrigues. Depois, me falou do disco e, quando terminou, seus olhos me olhavam vermelhos. No dia seguinte, voltando para São Paulo de avião, anotei num caderno o desenho de um homem chorando, segurando flores”, contou Elifas no livro Impressões (Editora Globo, 1996), uma biografia ilustrada por todas as principais criações de sua carreira, entremeadas por depoimentos como os do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Ao todo, foram 362 capas de disco, com destaque para Ópera do malandro, de Chico Buarque, e A Arca de Noé, de Vinicius de Moraes, que trazia um encarte para as crianças recortarem os bichinhos e montarem como quisessem as capas de seus discos.
Elifas Vicente Andreato nasceu em 1946, em Rolândia (PR). Filho mais velho de um casal de lavradores, teve que trabalhar desde cedo para ajudar a sustentar cinco irmãos, entre os quais, o ator Elias Andreato. Aos 14 anos, já em São Paulo, trabalhava numa fábrica como aprendiz e frequentava, à noite, um curso de alfabetização de adultos. Ilustrava o jornal dos operários de uma forma hoje considerada pré-histórica: desenhava charges diretamente no estêncil, película utilizada para impressão em mimeógrafo. Seria também no estêncil que desenharia, anos mais tarde, a famosa caveira com o quepe militar para denunciar os crimes da repressão, em publicação clandestina da Ação Popular (AP), grupo no qual militava ao lado de sua mulher, a fotógrafa Iolanda Huzak.
Admitido como estagiário na Editora Abril, em 1967, passa pelas redações das revistas Cláudia, Manequim, Quatro Rodas, Realidade e Veja, nas quais começa a perceber o contexto vivido pelo País. “A cabeça política começou a funcionar. Já tinha certa visão por causa das condições em que vivia, da minha própria biografia, da história dos meus familiares. Mas faltava entender por que aquilo era assim”, disse Elifas em uma entrevista de 2006, na qual cita como “seus professores” os jornalistas Paulo Patarra e Sérgio de Souza, da equipe de Realidade.
Ao dispor de condições materiais, como prancheta, papel e tinta, sua carreira dispara. De estagiário é promovido a chefe de arte na Abril Cultural, divisão da Editora Abril que, de 1968 até 1982, lançou mais de 200 fascículos, livros e discos no mercado editorial brasileiro. Incentivado por Victor Civita, dono e fundador do Grupo Abril, passa a frequentar as oficinas, onde aprende tudo sobre fotolito, retoque, ampliação. “Apliquei esse conhecimento na minha obra, recursos que nenhum artista gráfico tinha. Decidi também que não iria pintar quadros para as paredes de casas ou museus. O que eu queria era me comunicar com os meus iguais.”
Na década de 1970, já afastado da Abril, Elifas Andreato foi responsável pelas capas mais contundentes das publicações de oposição ao regime, como a revista Argumento e os jornais Opinião e Movimento. Trabalho dobrado, porque, na maioria das vezes, os originais eram vetados pela censura e precisavam ser refeitos. As tentativas de ludibriar os censores podiam ser traumáticas. Certa vez, submeteu ao censor um desenho em branco e preto de Dom Paulo Evaristo Arns para a capa de Opinião, mas, na gráfica, aplicou a tinta vermelha da roupa do cardeal. Resultado: um tapa na cara e três horas num camburão. “Era humilhante o que eles faziam. Além de baterem, o interrogatório era violento e repleto de insultos”.
Passou a fazer cartazes de teatro. Para a peça Mortos sem sepultura, de Jean-Paul Sartre, desenhou um torturado no pau de arara. Para disfarçar, no canto inferior da imagem, colocou um soldado com a suástica no ombro. Não adiantou, os cartazes foram recolhidos. Contra o argumento de que a história se passava na França ocupada pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, os policiais retrucaram: “Nada disso. O pau de arara é uma invenção brasileira.”
Outra denúncia de tortura foi a obra originalmente feita para uma exposição comemorativa do centenário de Pablo Picasso, em 1981. A imagem acrescenta elementos do quadro Guernica ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido em São Paulo, em 1975, no mesmo dia do nascimento do pintor espanhol, 25 de outubro. Por meio de sua arte, Elifas nos adverte: a barbárie está à espreita, em qualquer época ou país.
Professor de Artes na Universidade de São Paulo (USP) sem nunca ter passado por um banco de escola, Elifas Andreato assumiu também o jornalismo ao criar e editar o Almanaque Brasil de Cultura Popular, inicialmente uma revista distribuída a bordo dos aviões da TAM (atual LATAM). Em 2016, ao completar 70 anos de idade e 50 de carreira, se autodefiniu nestes termos: “Sempre fui preocupado com as liberdades básicas de cada pessoa, com os direitos humanos, independentemente de siglas partidárias. Minha vocação é a militância, a esperança, a brasilidade.”