Música erudita brasileira {250 anos}

22 de setembro de 2023

Em 1500, o colonizador português descobriu, além do Brasil, um povo que gostava de música: em seus rituais, os índios entoavam cantos ao som de tambores, chocalhos, flautas e apitos, batendo palmas ou marcando com os pés os passos das danças. A eles se somaram as tradições musical e instrumental europeias utilizadas pelos jesuítas para catequizar os indígenas, completada pelos ritmos vibrantes dos africanos escravizados.

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Dessas três raças e influências se formou o rico manancial da música brasileira, logo dividido nas vertentes folclórica (anônima e transmitida oralmente de geração em geração), popular urbana (de autor conhecido) e clássica ou erudita. Esta última, que condensa o patrimônio cultural de séculos e o apresenta nas salas de concerto e teatros de ópera, está comemorando 250 anos de presença no País, período em que produziu o maior compositor das Américas no século 19, Antônio Carlos Gomes, e o mais importante gênio musical do continente em todos os tempos: Heitor Villa-Lobos.

Ambos colocaram o Brasil no mapa-múndi musical, mas de formas diferentes. A obra O selvagem da ópera – título de uma biografia romanceada de Carlos Gomes, escrita por Rubem Fonseca – popularizou uma história brasileira, O guarani, por meio de uma ópera escrita em italiano e dirigida ao público da pátria de Verdi e Puccini. Já o “índio de casaca”, como Villa-Lobos definia a si próprio, foi o responsável por romper com uma música “transplantada e subserviente de colônia” – no dizer do escritor e musicólogo Mário de Andrade –, maravilhando o mundo com a série de choros ou as célebres Bachianas brasileiras.

Muito antes disso, porém, a música erudita acompanhou nossos ciclos econômicos. Desfrutou um período de grande atividade na segunda metade do século 18, que coincide com o barroco mineiro das artes plásticas, consagrado pelas obras de Aleijadinho. Em Vila Rica (Ouro Preto, MG) e no Arraial do Tijuco (Diamantina, MG) havia, nessa época do auge da mineração, milhares de músicos espalhados por confrarias religiosas, que executavam música de origem europeia e composições próprias, quase todas de caráter sacro ou litúrgico, destinadas a difundir e fortalecer a fé católica, esteio fundamental das relações escravistas e coloniais.

BARROCO MULATO

Esse tesouro cultural das irmandades integradas por homens negros, tanto escravos como libertos, foi ignorado durante mais de um século e quase todo consumido como papel velho em fogueiras de São João, num dos mais tristes episódios de descaso para com a memória nacional. As obras dos Mestres Mulatos, como passaram a ser chamados, só se tornaram conhecidas graças ao musicólogo alemão Curt Lange, que na década de 1940 se embrenhou com um jipe no sertão mineiro coletando partituras e montando fragmentos de composições, hoje preservadas no Museu da Inconfidência de Ouro Preto.

Para que se tenha uma ideia da qualidade dessas obras, o maestro Júlio Medaglia, que trabalhou com Curt Lange e realizou concertos de divulgação do acervo coletado, conta sobre a reação dos europeus: “Ouviam e diziam que devia ser música do período pré-clássico da Itália, Áustria ou Alemanha. Eu morria de rir e falava: ‘Errou por 20 mil quilômetros. Isso nasceu no sertão da América Latina’. Ninguém acreditava”.

Os mulatos conheciam a música europeia e nela se espelhavam. Lange encontrou uma folha de um quarteto de Haydn, copiada por um certo Maciel em 1794, quando o célebre compositor austríaco ainda vivia. “De tanto ser tocada, tinha a ponta direita inferior, usada para virar a página, inteiramente transparente”, acrescenta Medaglia no artigo intitulado “O milagre musical do barroco mulato”, incluído em seu livro Música impopular (Global Editora).

Das 900 partituras recolhidas por Lange, o principal legado em quantidade e qualidade pertence a José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805), filho de escrava com pai português, cujo estilo oscila “entre Pergolesi e Mozart”, na opinião de Vasco Mariz, diplomata e musicólogo, autor da História da música no Brasil (Editora Nova Fronteira). Entre missas e ladainhas, é de Lobo de Mesquita a Antífona de Nossa Senhora para coro, violinos e baixo contínuo. Escrita em 1787, foi o primeiro manuscrito encontrado, um alento para Curt Lange prosseguir na busca e comprovar sua tese de que já se fazia música de qualidade no Brasil antes da chegada de D. João VI.

O monarca português, entretanto, apaixonado cultor da música, deu a essa forma de arte um grande impulso, tanto pela contratação de compositores do mais alto nível como pela construção, em 1813, do Real Theatro de São João, primeira casa de espetáculos brasileira apta a receber as produções operísticas europeias.

Escorraçada por Napoleão, a corte portuguesa que aportou em 1808 nem sequer teve tempo de incorporar músicos à comitiva que atravessou o Oceano Atlântico. Teve de se contentar com a “prata da casa” que encontrou para abrilhantar instituições como Capela e Câmara Reais. Para surpresa dos aristocratas lusitanos, porém, aqui pontificava o padre José Maurício Nunes Garcia, organista e mestre-de-capela da Catedral e Sé do Rio de Janeiro desde 1798.

Um dos fundadores da Irmandade de Santa Cecília, a mais célebre instituição musical daquele tempo, Garcia dirigiu todas as atividades musicais da corte até 1811, quando foi substituído por Marcos Portugal, compositor lusitano especializado em óperas de estilo napolitano. Autor de portentosa obra com perto de 200 composições que chegaram até nossos dias – entre as quais se destacam a Missa de Requiem, o Officium 1816, escrito para as exéquias da rainha D. Maria I, e a Missa de Santa Cecília –, o padre José Maurício, neto de escravos e músico autodidata, nasceu em 22 de setembro de 1767, no Rio de Janeiro, data considerada marco inicial de nossa música erudita, há exatos dois séculos e meio.

O compositor austríaco Sigismund von Neukomm, discípulo de Haydn que viveu no Rio de Janeiro entre 1816 e 1821 e foi professor de D. Pedro I e D. Leopoldina, não media elogios ao nosso primeiro grande compositor, que considerava “o maior improvisador do mundo”. O que não impediu que José Maurício fosse discriminado por ser negro e afastado da corte para morrer na miséria, em 1830. Seu declínio coincide com a substituição dos músicos mestiços, seguindo a transformação então verificada na Europa, onde a música, antes mera tarefa manual, passa a ser considerada obra de arte. Com status de artista, os brancos passaram a ocupar e monopolizar os postos nas orquestras, como até hoje ocorre no Brasil.

Após a volta de D. João VI a Portugal, o Brasil que emerge da independência é um país que nasce mergulhado em dívidas, sem condições de manter o fausto do período joanino, em que pese o fato de D. Pedro I ser “um apaixonado e hábil musicista, que dirigia ele mesmo as execuções da Capela Real”, de acordo com a descrição de Mário de Andrade em sua Pequena história da música (Editora Nova Fronteira).

Na segunda metade do século 18, período do barroco mineiro consagrado por Aleijadinho, músicos tocavam em confrarias religiosas obras litúrgicas destinadas a difundir a fé católica.

HINOS E ÓPERAS 

Nosso primeiro governante tocava nada menos do que seis instrumentos (fagote, trombone, clarinete, violoncelo, flauta e rabeca) e nos deixou composições como o “Hino da Independência” e o “Hino da Carta”, em comemoração à Revolução do Porto, que liderou para retomar de seu irmão Miguel a coroa portuguesa. Durante seu reinado, o único compositor de destaque foi Francisco Manuel da Silva, aluno de José Maurício e de Neukomm. O hino que compôs em 1831 para celebrar a abdicação de Pedro I foi acolhido após a Proclamação da República como o nosso “Hino Nacional Brasileiro”, com letra de Osório Duque Estrada.

Francisco Manuel da Silva teve o mérito adicional de fundar, em 1841, o Conservatório de Música, posteriormente Instituto e Escola Nacional de Música. Em 1857, conseguiu o apoio de D. Pedro II para fundar a Academia Imperial de Música e Ópera Nacional, que abrigaria os primeiros passos de Carlos Gomes no drama lírico com Noite no castelo e Joana de Flandres. Período de brilho na vida musical brasileira, o Segundo Reinado proporcionava temporadas anuais com mais de 60 espetáculos de companhias italianas.

É nesse contexto que após seus primeiros êxitos operísticos de juventude o Tonico de Campinas (SP), nascido em 11 de julho de 1836, filho de um regente de banda, com sangue indígena nas veias por parte de mãe, recebera do imperador uma bolsa anual para estudar na cidade italiana de Milão.

Nessa Meca do canto lírico do século 19, Carlos Gomes se formou no conservatório local e desenvolveu carreira vitoriosa de óperas de grande sucesso, a primeira das quais é até hoje a mais conhecida: O guarani, baseada no romance homônimo de José de Alencar, de 1857.

Na estreia no Teatro Scala, em 1870, a obra ainda não tinha a famosa “Protofonia” – introduzida no ano seguinte, na récita que abrilhantou a abertura da exposição industrial de Milão. Considerada como segundo hino nacional brasileiro, seus acordes iniciais precederam, durante décadas, as transmissões radiofônicas da Voz do Brasil.

Saudado como um “vero genio musicale” por Giuseppe Verdi, Carlos Gomes foi agraciado pelo rei Vittorio Emanuelle II com o título de “Cavaleiro da Coroa da Itália”. Aos 34 anos, tornou-se o primeiro músico do Novo Mundo a romper o isolamento colonial, projetando o Brasil no cenário internacional. “Ele está entre os grandes melodistas do século 19, como era costume na escola oitocentista italiana em que se cultivou”, assegurou Mário de Andrade.

Seguiram-se óperas de temática europeia (como Fosca, Salvator Rosa e Maria Tudor), até que o compositor de cabelos longos, sobrancelhas e bigodes espessos voltasse a um tema brasileiro, mais do que atual quando a campanha pela abolição da escravatura atingia o apogeu. O escravo, dedicada à Princesa Isabel, foi a única obra de Carlos Gomes composta na Itália a estrear não naquele país, mas no Brasil, em 27 de setembro de 1889, com estrondoso triunfo.

O advento da República, dois meses depois, entretanto, desiludiu o mestre, que compôs apenas mais uma ópera, Condor, e o poema vocal sinfônico Colombo. Autor com maior número de estreias no La Scala por mais de uma década e que por três vezes disputou o privilégio de abrir a temporada desse templo máximo da ópera com Verdi (e o venceu), Carlos Gomes morreu aos 60 anos, em 1896, em Belém do Pará, onde fora convidado pelas autoridades locais para fundar o conservatório de música da cidade. Além das óperas, deixou hinos e canções, como a conhecida “Quem sabe?”, gravada por nomes da música popular como Ney Matogrosso.

D. João VI, apaixonado por música, impulsionou essa forma de arte com a construção do Real Theatro de São João, primeira casa de espetáculos brasileira apta a receber as óperas europeias.

NACIONALISMO MUSICAL

Nos últimos decênios do século 19, surgiu na Europa o nacionalismo musical, corrente estética que valoriza o aproveitamento de ritmos ou melodias populares de diferentes países nas obras de seus respectivos compositores, acrescentando-lhes um toque patriótico. No Brasil, o primeiro a embarcar nessa tendência foi o cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920), ardente defensor da canção brasileira e do canto em português. Autor da Série brasileira, obra sinfônica pioneira em incluir temas populares como sapo- -cururu e batuque, ele abre caminho para que, após a Semana de Arte Moderna de 1922, o nacionalismo propagador da riqueza musical brasileira se tornasse o pilar fundamental de nossa música erudita no século 20.

Mas onde estava e qual era essa riqueza? É o que se perguntava o jovem Heitor Villa -Lobos, que aos 16 anos se refugiava na casa de uma tia para poder desfrutar da boêmia carioca dos anos de 1900, na qual pontificavam chorões do porte de Anacleto Medeiros, Ernesto Nazaré e Chiquinha Gonzaga. É dessa forma que o músico precoce, nascido no Rio de Janeiro em 5 de março de 1887 e que aos seis anos de idade aprendera com o pai a tocar violoncelo numa viola adaptada para o seu tamanho, descobriu a música popular urbana de seu país. O principal dos clássicos ele já conhecia, de tanto ouvir outra tia, pianista, tocar o Cravo bem temperado, de Johann Sebastian Bach.

Dois anos depois, Tuhu, apelido que ganhara na infância por sua paixão em imitar o apito de um trem, parte em longa viagem de rastreamento cultural por todo o Brasil. Demora-se tanto nas regiões Norte e Nordeste que a família, sem notícias, manda rezar uma missa por sua alma. Mas quando volta, traz na bagagem o acervo popular que lhe permitiria mais tarde dizer, ao rebater um crítico: “O folclore sou eu”.

Em 1907, aos 21 anos, compôs sua primeira obra típica – Cânticos sertanejos, para pequena orquestra – e recebeu aulas de harmonia com Frederico Nascimento, do Instituto Nacional de Música. A partir daí, tornou-se um “autodidata completo”, na definição de Vasco Mariz.

Ao contrário de Carlos Gomes, que fora à Europa aprender, Villa-Lobos instalara-se em Paris na década de 1920 para mostrar o que fazia por aqui, como a Prole do bebê, série para piano baseada em melodias folclóricas, mais tarde reunidas num Guia prático, utilizado como cartilha para o ensino de música nas escolas. Preocupado com os efeitos da “música de repetição”, hoje levada ao paroxismo pelas possibilidades tecnológicas ao dispor da indústria cultural, ele pretendia preservar o bom gosto musical da população por meio da educação.

Ao morrer em 1959, aos 82 anos, o campeão da música brasileira no exterior, de acordo com as arrecadadoras de direitos autorais, deixou quase 2 mil títulos entre sinfonias, óperas, concertos e música de câmara. Sem tempo para ensinar, Villa-Lobos não formou uma escola, mas sua música influenciou as gerações posteriores de compositores brasileiros, inclusive na vertente popular. Tom Jobim, o criador da bossa-nova, considerava-se “filho musical” do mestre que lhe inspirou a escrever músicas conectadas com os pássaros e com a exuberante natureza nacional.

A reportagem foi publicada originalmente na edição 440 da Problemas Brasileiros e sua republicação no site da revista faz parte das ações em comemoração aos 60 anos da PB.

Herbert Carvalho Débora Faria
Herbert Carvalho Débora Faria