O brasileirismo de Jacob do Bandolim

11 de outubro de 2023

O autor de clássicos como “Doce de coco”, “Noites cariocas” e “Assanhado” era autodidata no instrumento que virou seu sobrenome e se dividia entre o emprego como escrevente no Tribunal de Justiça e a paixão pelo choro, sobre o qual reuniu um acervo com 10 mil itens entre arquivos sonoros, partituras e manuscritos. De 1947, quando gravou “Treme-treme”, de sua autoria, até sua morte, em 1969, fez 52 discos.

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“O indivíduo tem que me acertar aqui. Se me acertar na mosca eu não quero saber de que jeito foi, não quero ver meios para atingir fins. Ele tem que me botar em prantos, em estado de enfarte. Aí funciona.”

Gravada em fevereiro de 1967 pelo compositor, instrumentista e pesquisador da música popular brasileira Jacob do Bandolim, em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, essa fala explicava a emoção que sentia diante de um bom choro. Tornou-se premonitória. Quinze dias depois, sofreu seu primeiro enfarte no palco do Teatro Casa Grande, também no Rio, ao se emocionar além da conta na interpretação de Lamentos, choro de Pixinguinha.

Autor de clássicos do choro como “Doce de coco”, “Noites cariocas” e “Assanhado”, Jacob Pick Bittencourt nasceu no Rio de Janeiro, em 14 de fevereiro de 1918. Filho de Raquel Pick e do farmacêutico capixaba Francisco Gomes Bittencourt, morou com a mãe durante a infância na Rua Joaquim Silva, próximo aos Arcos da Lapa, região de boêmios, malandros e artistas. A poucos quarteirões de sua casa, Pixinguinha já se apresentava como flautista na choperia La Concha antes mesmo do nascimento desse menino, que, aos 12 anos, encantou-se com o som do violino tocado na calçada por um cego, em troca de moedas.

Pediu e ganhou um violino cujas cordas se rompiam quando ele, sem jeito para manusear o arco, tentava tirar som delas usando grampos de cabelo. Foi quando uma vizinha arriscou: “O que ele quer é tocar bandolim”.

Judia nascida na cidade polonesa de Lódz, Raquel fazia parte do grupo de “jovens polacas” mencionadas por Aldir Blanc na letra de “Mestre sala dos mares”, parceria com João Bosco. Eram “escravas brancas” seduzidas no Leste da Europa por traficantes com promessas de casamento que, ao se verem sem família num país desconhecido, tinham apenas a prostituição como alternativa.

Administradora de uma “casa de moças” sob o disfarce de “pensão”, ela soube preservar o único filho de influências negativas, dando lhe uma boa educação. Jacob estudou no Colégio Cruzeiro, da comunidade alemã, e na British American School, duas das melhores instituições de ensino da época.

Em 1932, quando o filho cursava o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), Raquel Pick se tornou a primeira secretária da Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita. Esse foi o meio encontrado por ela e suas conterrâneas para contornar a perseguição e a descriminação que sofriam por parte da comunidade judaica tradicional.

Próximo ao sobrado em que morava com a mãe na Lapa, a secretária de Mr. Evans (diretor artístico da gravadora norte-americana RCA Victor), dona Valentina, realizava animados saraus. Foi num deles que Jacob ouviu o primeiro choro: “É do que há”, de autoria do compositor e clarinetista Luís Americano, executado pelo próprio. Impressionado, arrebentava os dedos para reproduzir o que ouvia em seu primeiro instrumento, um bandolim de cuia tipo napolitano.

Autodidata que jamais teve um professor, formou com amigos o Conjunto Sereno e se apresentou pela primeira vez aos 15 anos na Rádio Guanabara, tocando o choro “Aguenta Calunga”, do flautista paulista Atílio Grani. Após experimentar o violão em breve período na companhia de fadistas portugueses, volta ao bandolim para iniciar sua carreira de solista. O ponto de partida foi a nota máxima de um júri composto por Francisco Alves, Benedito Lacerda e Orestes Barbosa no concurso radiofônico Programa dos Novos, que venceu ao superar 28 concorrentes.

Cercou-se de exímios instrumentistas, como o violonista César Faria, pai do compositor Paulinho da Viola, seu fiel escudeiro pelas décadas seguintes. O grupo Jacob e sua Gente passou a se revezar nas rádios e gravadoras com o regional de Benedito Lacerda – “Gente do morro”, o mais renomado da época – no acompanhamento dos principais cantores e cantoras.

Em 1940, aos 22 anos, casou-se com Adylia Freitas, companheira de toda a vida, com quem teria os filhos Sérgio Bittencourt – que se tornaria compositor e jornalista – e Elena, cirurgiã-dentista e presidente do Instituto Jacob do Bandolim, após a morte do pai.

ÉPOCA DE OURO

Suas atividades musicais se tornam, desde então, semiprofissionais, pois não bastavam para o sustento da família. Em 1943, prestou concurso e conseguiu ser nomeado escrevente da Justiça do Rio de Janeiro, função que exerceu até se aposentar. A despeito disso, dividiu o tempo entre o tribunal e a música: entre 1947, quando estreia em disco com o choro “Treme-treme”, de sua autoria, até sua morte, em 1969, gravou 52 discos. Manteve também durante anos na Rádio Nacional – templo máximo da música popular brasileira na Era do Rádio – o programa Jacob do Bandolim e seus discos de ouro.

Além das gravações e de pesquisas sobre o repertório do choro (que resultaram em fantástico acervo de 10 mil itens entre arquivos sonoros, partituras e manuscritos entregues ao MIS/RJ após sua morte), a grande contribuição de Jacob do Bandolim à música instrumental brasileira foram os famosos saraus e as rodas de choro que organizava em sua casa no bairro carioca de Jacarepaguá.

Nas enormes varandas protegidas por muros altos, recepcionou Canhoto da Paraíba e outros chorões nordestinos, além de músicos internacionais como o pianista russo Sergei Dorensky e o violonista uruguaio Oscar Cáceres. Ali se reunia aos sábados o mítico conjunto Época de Ouro: Dino 7 Cordas, César Faria e Carlos Leite (violões), Jonas Silva (cavaquinho), Gilberto D’Avila (pandeiro) e o próprio Jacob no bandolim, substituído em 1973 por Deo Rian, que ainda muito jovem tinha acesso à casa e ao arquivo do mestre.

A organização do sarau era algo milimetricamente planejado, explica o cavaquinista Henrique Cazes. “Para se ter uma ideia, Jacob por vezes cortava seu ídolo Pixinguinha da lista de convidados, para evitar chatos que vinham com ele.” Cazes acrescenta que o silêncio era total durante a música e invoca o testemunho do filho de Jacob, Sérgio, sobre a seriedade desses encontros: “O estado de contrição diante de um choro lá em casa é muito exigido”.

Da Europa Central chegou até nós o DNA não apenas de Jacob do Bandolim, mas do próprio choro, de acordo com o livro de Henrique Cazes, Choro – do quintal ao municipal (Editora 34): “Se eu tivesse que apontar uma data para o início da história do choro, não hesitaria em dar o mês de julho de 1845, quando a polca foi dançada pela primeira vez no Teatro São Pedro”.

Original da Boêmia, na atual República Tcheca, de compasso binário, melodia saltitante e comunicativa, a polca se espalhou como rastilho de pólvora na Corte Imperial do Rio de Janeiro, habituada aos minuetos e quadrilhas, que mantinham os pares separados. Se já era motivo de críticas moralistas o homem tocar a cintura da mulher para uma valsa, os pulinhos dos casais polquistas enlaçados constituíram a primeira liberação dos costumes nas camadas médias da sociedade brasileira.

Filho da polca europeia com ritmos brasileiros como o maxixe e o lundu, o choro foi, primeiro, uma maneira de tocar e abrasileirar ritmos estrangeiros, que reservava amplo espaço à improvisação e à virtuosidade instrumental, assim como às inflexões melancólicas que justificam o nome. “Acredito que a palavra ‘choro’ seja uma decorrência da maneira chorosa de frasear, que teria gerado o termo ‘chorão’, para designar o músico que ‘amolecia’ as polcas”, explica Cazes.

Na segunda metade do século 19, o Rio de Janeiro já era conhecido como a “Cidade dos Pianos”, o que explica a vertente pianística do choro, comandada por Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. Mas seria longe dos salões aristocráticos e burgueses, onde o piano simbolizava a sintonia com a “civilização”, que o choro ganharia sua forma básica de quarteto formado por dois violões (mais tarde, um deles com sete cordas), flauta e cavaquinho, que sobrevive até hoje completado por um pandeiro – a percussão foi incorporada somente na década de 1920 por João da Baiana, macumbeiro amigo de Pixinguinha.

Os chorões, nome dado aos instrumentistas populares que tocavam choro, apresentavam-se em aniversários e casamentos, em festas religiosas e profanas, nos arranca-rabos de “cabeça de porco” e nas estalagens iluminadas à lamparina de querosene. Considerado o “Pai dos chorões”, o flautista carioca Joaquim Callado, afro-brasileiro filho de um mestre de banda, nascido em 1848 e morto em 1880 durante uma epidemia de meningite, criou uma escola com suas interpretações originais e deixou 70 composições, entre as quais “Lundu característico” e “Flor amorosa”, gravada por Jacob do Bandolim em 1945 e tocada regularmente até hoje.

CLÁSSICO E POPULAR

Apenas na década de 1910 o choro se tornou um gênero musical consolidado graças a Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha, compositor e virtuose inigualável na flauta e no saxofone, responsável por lhe dar forma, ritmo e calor. Variante mais leve do gênero, no chorinho a linha melódica tende a predominar sobre o contraponto musical.

Nascido no subúrbio carioca da Piedade em 1897 numa família de 14 irmãos, seu apelido mistura Pizindin (“menino bom”, de acordo com o dialeto africano de sua avó) com Bexiguinha, como foi chamado na infância por ter contraído varíola. Seu pai e vários de seus irmãos eram chorões, e o casarão onde cresceu, no bairro do Catumbi, era frequentado por vários músicos clássicos e populares, inclusive o jovem Heitor Villa-Lobos.

A proximidade da Praça Onze também marcou a formação de Pixinguinha, assíduo nos terreiros e casas das tias baianas, o berço do samba. Dos cabarés da Lapa, onde se apresentava ainda de calças curtas, teve a chance de substituir um flautista do Teatro Rio Branco: tinha início a carreira daquele que se tornaria o maior nome da música instrumental brasileira, inclusive como arranjador e regente. “Pixinguinha deve ser encarado como um ponto de partida a ser seguido pelos orquestradores brasileiros. Seus trabalhos nessa especialidade deixam transparecer valores típicos da nossa música popular, seja em harmonia, seja em contraponto, seja em ritmo e feição regional”, resume o maestro e compositor erudito Guerra Peixe.

Ao misturar o jeito com que os chorões tocavam ritmos como a polca e a valsa com elementos da tradição afro-brasileira e de sua experiência como músico profissional, Pixinguinha aglutinou ideias e deu ao choro suas obras primas iniciais, como “Lamentos” e “Carinhoso”, que mais tarde ganharam letras e se tornaram, ao lado da valsa “Rosa”, pérolas destacadas do cancioneiro nacional. “Vou vivendo”, “Naquele tempo” e “1 × 0” são outras composições suas obrigatórias em uma roda de choro que se preze.

Contemporâneos de Pixinguinha contribuíram muito para o desenvolvimento do choro, como os violonistas Sátiro Bilhar e João Pernambuco, este último integrante dos Oito Batutas. Esse pioneiro conjunto do gênero foi formado em 1919 por Pixinguinha e Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, autor de “Pelo telefone”, primeiro samba gravado na história.

Na convivência com os chorões do violão, Villa-Lobos recolheu o material básico de sua obra para o instrumento, exposta na “Suíte popular brasileira”, escrita entre 1908 e 1912. Na década de 1920, nosso maior compositor clássico encantaria Paris com seus monumentais choros sinfônicos, que incorporavam à orquestra instrumentos como tamborim, cuíca e reco-reco. Já famoso, quando perguntado por sua formação, a resposta era invariável: “Eu me formei pelo conservatório de Cascadura. Meus mestres foram Sátiro Bilhar, João Pernambuco e Pixinguinha”.

Na década de 1950, Jacob do Bandolim levou o choro para a TV ao lado de Pixinguinha e de um regional que foi o maior de todos os tempos, com 70 músicos amadores no palco. Foi consagrado também pelo compositor que mais transitou entre as músicas clássica e popular, Radamés Gnatalli, que a ele dedicou sua suíte para bandolim, orquestra e conjunto regional intitulada “Retratos”. Em quatro movimentos, a obra homenageia os compositores fundamentais na formação de nossa música instrumental: Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Para executá-la, Jacob teve que aprofundar seus estudos de teoria musical.

Eclipsado pelo extraordinário sucesso comercial de Waldir Azevedo (compositor e músico que explorou como ninguém as possibilidades sonoras do cavaquinho em choros como “Brasileirinho”, “Delicado” e “Pedacinhos do céu”, Jacob gravou ao fim da vida o principal de seus dez LPs, Vibrações, considerado por unanimidade um dos melhores discos instrumentais de todos os tempos. Em texto na contracapa, ele se autodefiniu assim: “Estudante de bandolim desde 1933 (que perseverança!), perito-contador (o que é?), escrivão da Justiça Criminal (treina na máquina o que tocará à noite) e escapulido do primeiro enfarte quando interpretava ‘Lamentos’ de Pixinguinha, o que valeu a pena”.

Escapuliu do primeiro e do segundo, mas no dia 13 de agosto de 1969, quando voltava de uma visita a Pixinguinha, que estava doente, não resistiu ao terceiro enfarte e faleceu na varanda de sua casa, nos braços da esposa. O autor de “Carinhoso” partiria quatro anos depois, em 1973, mas ao contrário do que o próprio Jacob vaticinara, o choro não morreu com eles. Como assegura Henrique Cazes, essa forma de música popular, ao mesmo tempo sofisticada, comunicativa e resistente, continua se renovando e atraindo novas gerações em pleno século 21.

Quanto a Jacob do Bandolim, a mais pungente homenagem, que o Brasil todo cantaria, foi feita por Sérgio Bittencourt, nestes versos gravados por Elizeth Cardoso e Nelson Gonçalves: “Naquela mesa ele sentava sempre/E me dizia o que é viver melhor/Naquela mesa ele contava histórias/Que hoje na memória eu guardo e sei de cor/Naquela mesa ele juntava gente/E contava contente o que fez de manhã/E nos seus olhos era tanto brilho/Que mais que seu filho/ Eu fiquei seu fã”.

A REPORTAGEM FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 443 DA PROBLEMAS BRASILEIROS E SUA REPUBLICAÇÃO NO SITE DA REVISTA FAZ PARTE DAS AÇÕES EM COMEMORAÇÃO AOS 60 ANOS DA PB.

Herbert Carvalho Débora Faria
Herbert Carvalho Débora Faria