“Quando o português chegou/Debaixo de uma bruta chuva/Vestiu o índio/Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/O índio tinha despido/O português.” Tomando os versos de Oswald de Andrade (1890-1954) como explicação, pode-se dizer que a Semana de 22 foi um perfeito dia ensolarado na praia, desses para nudista algum botar defeito. Ao abandonar as pesadas vestes da cultura eurocêntrica, aqueles ousados artistas davam um recado: era possível, sim, criar uma arte que fosse verdadeiramente nacional, que não precisasse ecoar o que vinha do outro lado do Atlântico. ESTE CONTEÚDO ESTÁ PUBLICADO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO #467 IMPRESSA DA REVISTA PB. A VERSÃO DIGITAL ENCONTRA-SE DISPONÍVEL NA BANCAH.
Artistas e pesquisadores contemporâneos costumam entender, hoje, aquele evento como uma espécie de marco fundador da cultura genuinamente brasileira. “A Semana nos levou a aprender a nos sentirmos brasileiros, a nos livrarmos da casaca europeia para nos enxergarmos caipiras, índios, negros, mestiços. E termos orgulho disso”, comenta a arquiteta Marcia Iabutti, professora de História da Arte. “Mostrou que podemos usar nossas cores berrantes, nossas formas sensuais, nossa música com origem na senzala e no terreiro, nossos personagens exóticos e engraçados, as lendas que povoam o imaginário popular. E mostrou que isso é bom.” “Foi uma ruptura com a estética, com os padrões europeus. E uma busca de autenticidade, de identidade nacional”, afirma o artista e ativista Thiago Mundano.
Para o cineasta João Paulo Miranda Maria, ocorreu “um momento de libertação” que proporcionou a artistas “encontrarem formas mais próprias ao Brasil, inspirados pelo rompimento das vanguardas europeias com a arte clássica”. “Havia a necessidade de encontrar uma identidade brasileira em sua arte, uma originalidade. Mesmo tendo sido uma ação com apoio político e das oligarquias daquela época, o movimento abriu a possibilidade de não imitarmos o estrangeiro, mas criar uma arte original que pudesse dialogar na mesma altura dos debates artísticos mundiais”, acrescenta. “Acima de tudo, encontrar uma própria identidade. O evento em si trouxe uma forte provocação ao público, pois não era bem o que a população esperava.”
Professor na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, o antropólogo David Nemer classifica a Semana de 22 como um “divisor de águas”. “O objetivo principal foi destruir o status quo e começar do zero uma nova identidade que representaria a cultura brasileira”, diz. “Isso não tem como negar”. É a ideia que ganhou o mundo. Em abril de 2021, por exemplo, o leitorado de Língua Portuguesa da Universidade de Ljubljana, na Eslovênia, dedicou uma de suas aulas a um mergulho na poesia brasileira. Cátedra focada principalmente no português europeu, era ali uma oportunidade de compreender as diferenças da variante nacional da língua. O recorte escolhido foi justamente partir do Modernismo – o entendimento era de que, antes disso, os movimentos literários brasileiros ecoavam e reproduziam aqueles que ocorriam em Portugal.
Por falar em literatura, o apreço ao coloquial e à oralidade tão característica do português brasileiro é um legado que foi incorporado e jamais se perdeu. “Está vigente ainda hoje esta valorização da língua nacional em detrimento a uma língua portuguesa de extração lusitana”, comenta o escritor e professor universitário Miguel Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). “[A Semana] nos levou a fazer arte, a fazer literatura, com o estilo da oralidade da linguagem brasileira, com as influências dos negros, dos indígenas, dos imigrantes, enfim, é o verdadeiro ‘desrecalque’. É como se, a partir da Semana de Arte Moderna, nós não tivéssemos mais vergonha de ser brasileiro”, afirma o escritor.
Voltando à metáfora do vestuário europeu, antes da Semana de 22, os artistas brasileiros do primeiro escalão eram reconhecidos por seguirem as bases metodológicas da chamada “arte acadêmica”, no Brasil muito difundida pela Escola de Belas Artes, do Rio de Janeiro. Aqueles dias pitorescos no Theatro Municipal de São Paulo, contudo, marcariam a quebra deste padrão. “Com o impacto dos acontecimentos de 1922, novas metodologias artísticas passaram a ser adotadas, porém, ainda baseadas na arte europeia”, explica o crítico e curador de arte Marcos Rizolli, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “A novidade foi a adesão aos estilos das vanguardas e um maior adensamento dos argumentos de brasilidade.”
Rizolli pensa em um pedregulho arremessado a um espelho d’água para explicar o fenômeno dali decorrente. “O ponto de contato entre a pedra e a água gera reverberações”, reflete. “Aos poucos, a ingenuidade e a jovialidade [daqueles modernistas] cederam perante ideias mais consistentes sobre arte e cultura. A perspectiva do novo consolidou seu território expressivo. As inspirações e influências geraram ações expressivas e atitudes estéticas autônomas. Os jovens amadureceram e conseguiram compreender suas atuações na cena artística brasileira, cada vez mais conectada e similar a uma arte mais internacional e globalizada.”
“Criar é inventar algo novo. A ruptura é a essência da arte. Neste sentido, a Semana de 22 trouxe a quebra de paradigmas, do susto, do choque. Foi ali que a gente começou a entender que a influência europeia era importante, alimentava-nos, mas que obrigava que vomitássemos a nossa digestão desta referência externa”, raciocina o roteirista de cinema Lusa Silvestre. “A arte brasileira buscava seu jeito particular, e isso sempre permanecerá. Além disso, o eixo geográfico do Brasil ali começou a se ampliar. A arte não era só feita pelos cariocas. Esta descentralização é vital para termos riqueza na produção.” Não, não é exagero dizer que aquela semana jamais terminou.