O ritmo de Jackson do Pandeiro

08 de julho de 2021

Jackson do Pandeiro foi um dos mais originais percussionistas e cantores brasileiros de todos os tempos – e, certamente, o mais influente. Nesta reportagem, publicada na edição #453 da revista PB, voltamos olhares ao papel fundamental exercido por ele na tradição da nossa música popular, tendo influenciado nomes contemporâneos que vão de Lenine a David Byrne (produtor da compilação Forró etc.). O conteúdo da PB está disponível nas melhores bancas digitais. Acesse.

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“A, E, I, O, Ypsilone.” No Carnaval de 1953, no Recife, quando a Rádio Jornal do Commercio colocou no ar a voz de Jackson do Pandeiro cantando o breque do coco “Sebastiana”, o Brasil encontrava sua máxima expressão de inventividade rítmica. A novidade logo circulou no lado B de um disco de 78 rpm que tem, no lado A, o rojão “Forró em Limoreiro”, de acordo com Fernando Moura e Antônio Vicente, autores da biografia Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo (Editora 34). A canção introduziu, na indústria cultural, a palavra que divide os folcloristas sobre sua origem: vem de for all, quando os gringos radicados no Nordeste abriam seus bailes a todos, ou é a simplificação de “forrobodó”, nome dado às festas populares da região desde o século 19?

Polêmicas à parte, o certo é que se o Brasil já tinha, desde a década de 1940, o “Rei do Baião” na figura do sanfoneiro pernambucano Luiz Gonzaga, acabava de ganhar o “Rei do Ritmo” na pessoa do paraibano batizado há cem anos como José Gomes da Silva – e imortalizado com o nome artístico cultuado pelas gerações de cantores que influenciou. O forró, por sua vez, tornou‑se decisivo para inserir alegria na identidade cultural dos nordestinos que, então, se espalhavam pelo País, atraídos pela construção de Brasília, pela explosão imobiliária e pelo desenvolvimento industrial no Rio de Janeiro e em São Paulo. Passa a identificar não apenas o lugar onde se dança, mas os ritmos dançantes como baião, xote, coco, rojão e xaxado, além dos bailes, que os sertanejos chamam de “bate‑coxa” ou “rala‑bucho”, em sua linguagem peculiar.

O coco, de origem africana com influência indígena, é um canto‑dança das praias e do sertão da Paraíba e do Rio Grande do Norte, Estados onde Mário de Andrade coletou material nas décadas de 1920 e 1930, reunido no livro Os cocos, fruto de suas pesquisas folclóricas e etnográficas. “A sutileza e a dificuldade rítmica dos cocos é formidável. Gente que ignora a teoria musical nos mostra a maneira mais humana e verdadeira de conceber o ritmo.” Estas palavras, de um dos maiores pesquisadores dos ritmos brasileiros, traduzem a essência do menino pobre e analfabeto que aprendeu a cantar coco com a mãe em Alagoa Grande, onde nasceu, no sertão da Paraíba, e com os sapos do lugar, pois a cidade ostentava o título de “Princesa do Brejo”.

Os timbres, as onomatopeias e as nuances sonoras presentes na capacidade inigualável de síncope e divisão rítmica de Jackson do Pandeiro evocam o coaxar da saparia de sua infância, uma verdadeira “toada improvisada em dez pés”, como diz a “Cantiga do sapo”, de sua autoria. Com andamento mais acelerado que o baião, o coco é acompanhado por palmas, batidas dos pés e instrumentos de percussão. Flora Mourão, a mãe do futuro “Rei do Ritmo”, se apresentava em festas cantando cocos e tocando ganzá, acompanhada por João Feitosa, que tocava zabumba. Num dia em que o zabumbeiro não apareceu, o menino de oito anos o substituiu. É nessa época que outros dois fatos iriam marcar sua trajetória: José Gomes vira Zé Jack – por influência do ator norte‑americano de filmes de bangue‑bangue Jack Perrin – e ganha da mãe um pandeiro, instrumento que mudaria a vida do percursionista.

Crônicas sertanejas

Quando morrera o marido e pai de seus filhos, Flora se mudou com a prole para Campina Grande, onde o primogênito Zé Jack trabalhava como ajudante de padeiro para ajudar no sustento da família. Num dia de Carnaval, enquanto preparava a massa para o pão, um grupo de foliões na rua o arrastou para outro destino: dali por diante, ainda menor de idade, passaria a tocar pandeiro e bateria nos clubes e cabarés da cidade, ganharia nome como instrumentista e conheceria outros ritmos e músicos. Entre esses, uma influência determinante: Manezinho Araújo, que aparecia ao fim dos cinejornais da Atlântida, cantando a temática nordestina na forma de emboladas. Dele, Jackson herdaria, além do estilo musical, o chapeuzinho de abas curtas, usado de banda, uma de suas marcas registradas. Em 1944, envolveu‑se numa briga com soldados do Exército.

Temendo represálias, resolve partir para João Pessoa, onde passaria a integrar a orquestra e os conjuntos regionais da Rádio Tabajara, sob as batutas dos maestros Moacyr Santos e Manoel Alves de Oliveira, o Nôzinho. É quando passaria de “Jack” a um nome mais sonoro para o rádio – Jackson do Pandeiro – e encontraria o parceiro que daria o rumo definitivo à sua carreira: o compositor Rosil Cavalcanti. Quando se transferiu para o Recife acompanhando o maestro Nôzinho, Jackson levou na bagagem algumas composições de Rosil que seriam os maiores sucessos de sua carreira, a começar por “Sebastiana”, coco que é crônica da vida sertaneja, enfocando com bom humor personagens e situações, fórmula repetida pelo autor em outras pérolas do repertório do rei do ritmo, como “Na base da chinela”, embolada gravada também pela paraibana Elba Ramalho.

Na estreia de “Sebastiana”, porém, algo mais do que a música e a letra causariam impacto no público presente ao auditório da Rádio Jornal do Commercio: a coreografia. Isso porque a radioatriz Luiza de Oliveira, encarregada de fazer um vocal feminino para responder ao refrão, resolveu, no meio da apresentação, dar uma umbigada no parceiro, incorporando a própria “guariba” (macaco do gênero Alouatta). Bingo! Por insistência da plateia e dos ouvintes, os dois teriam de repetir a cena várias vezes, naquela e nas 26 noites seguintes. A parceira definitiva de Jackson, porém, não seria a veterana e já cansada Luiza, mas a jovem Almira Castilho, com quem formaria uma dupla de contrastes.

“Eram exatamente opostos. Ela, com um salto qualquer, passava dos 1,80 m. Ele, curvava‑se para diminuir seus 1,67 m, acentuando a diferença. Ela, alva, quase bela. Ele, mulato, quase feio. Ela, culta, estreante no mundo artístico, prendada num lar tradicionalista. Ele, analfabeto, com anos de estrada musical”, conforme descrevem Moura e Vicente, na biografia do artista. Opostos, mas complementares, caíram no gosto do público e se tornaram parceiros no palco e na vida conjugal durante os 12 anos seguintes, exatamente o auge da carreira do cantor. Com a companheira ele aprenderia a ler e a escrever, aos 35 anos.

Rojão de viola

Quando o casal chegou ao Rio de Janeiro, o primeiro disco gravado em Recife pelo selo Copacabana já tinha vendido 50 mil unidades. Para que se tenha uma ideia do que isso representava, a cantora Ângela Maria, principal estrela da gravadora, não passara dos 20 mil discos vendidos. Além de “Sebastiana”, o disco da estreia trazia “Forró em Limoeiro”, um rojão de autoria do compositor Edgar Ferreira, um dos criadores deste ritmo, próximo do coco. A origem do termo é o rojão de viola, pequeno trecho musical tocado antes dos versos nas cantorias com desafio, de acordo com o Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo. Outros rojões de sucesso de Ferreira na voz de Jackson foram “1 x 1” e “Dezessete na corrente”. Com os rojões de Edgar Ferreira e os cocos de Rosil Cavalcanti, Jackson do Pandeiro se firmou no panorama da cultura nacional como um renovador da música nordestina. Desde a chegada ao Rio de Janeiro, em 1954, até a separação, em 1967, a dupla Jackson e Almira comandou um programa de TV (Forró do Jackson), participou de uma dezena de filmes com seus números musicais e embarcou na novidade do mercado fonográfico, o long play.

O primeiro deles foi Jackson e Almira – os donos do ritmo, de 1957, que fala da origem do coco na faixa “Coco social”, de Rosil Cavalcanti: “Ele é pernambucano/Do canavial/Veio pro salão/É social”. Os surgimentos avassaladores da música pop e da Jovem Guarda, ocuparam todos os espaços da mídia, empurrando os nomes consagrados da música nordestina para o interior do Brasil, na tentativa de sobreviverem artística e profissionalmente.

Com dois irmãos e um cunhado, Jackson acabou formando o grupo Borborema e se integrou à caravana Pau de Sebo, trupe mambembe idealizada pelo sanfoneiro Abdias, diretor artístico da gravadora CBS. Sobre os efeitos da onda estrangeira no mercado nacional, ele dizia que era preciso resistir, “sem roer a corda”. Ao jornal Última Hora, fez um balanço do estrago: “As rádios despediram os casts, acabaram as orquestras, os regionais. As gravadoras só queriam o produto importado: música de filhinhos de papai feita para outros filhinhos de papai. Uma concorrência desleal”.

Em seus tempos de ostracismo, Jackson atuou como percussionista na produção de discos de outros artistas, algo tão inusitado como seria João Gilberto ou Tom Jobim fazendo o mesmo no violão e no piano. Jackson do Pandeiro foi o responsável direto por revelar diversos nomes da música popular brasileira, como o cantor Bezerra da Silva. O apartamento de Jackson no bairro carioca da Glória era passagem obrigatória dos conterrâneos em busca de um “lugar ao sol”.

Escola de canto

Muito maior, entretanto, foi o contingente de jovens cantores influenciados por ele, desde tropicalistas, como Gilberto Gil e Gal Costa – responsáveis por sua reabilitação nos anos de 1970 –, até roqueiros como Herbert Vianna, passando pela geração intermediária de Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Morais Moreira, Fagner e Zé Ramalho.

Para vários nomes da MPB, havia duas escolas de canto no Brasil: a de João Gilberto e a de Jackson do Pandeiro. Em 1972, quando já estava, segundo as próprias contas, há cinco anos sem sequer dar uma entrevista, Jackson foi o escolhido pelos jovens compositores pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo para defender a embolada “Papagaio do futuro”, de autoria da dupla, no VII Festival Internacional da Canção, da TV Globo, o último do ciclo dos festivais que tiveram seu auge na década anterior.

Estranhou quando viu as cabeleiras dos garotos, mas sossegou quando viu que as músicas deles lhe eram totalmente familiares. Ainda na década de 1970, apresentou‑se com Alceu Valença no projeto Seis e Meia, realizado no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, que mesclava em duplas artistas de diferentes gerações. O êxito garantiu a presença de Jackson e Alceu no Projeto Pixinguinha, bancado pelo Banco do Brasil, que realiza concertos nas cidades do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Curitiba, de Porto Alegre e de Belo Horizonte. Em 10 de julho de 1982, após uma vida desregrada repleta de álcool e cigarro, arrematada por um diabetes não tratado, Jackson do Pandeiro morreu aos 63 anos, em Brasília – onde havia passado mal no aeroporto enquanto esperava uma conexão. Deixou 415 músicas gravadas em diversos selos e formatos, boa parte delas obrigatória em qualquer arrasta‑pé que se preze.

A essa altura, apenas na cidade de São Paulo havia cerca de 300 salões de forró, alguns famosos, como de Pedro Sertanejo, no bairro do Brás, tradicional reduto nordestino, ou o Asa Branca, em Pinheiros. Em 1989, morre Luiz Gonzaga, não sem antes obter do sanfoneiro conterrâneo José Domingos de Morais, o Dominguinhos, nomeado por ele próprio como seu sucessor, uma promessa solene: “Fique tranquilo, mestre, enquanto estivermos vivos e com saúde, o forró vai perdurar”. Quase uma década depois, em 1997, a revista Veja noticiou: “A farra do forró: bailes nordestinos viram moda no sul do País e fazem a festa dos jovens da classe média”.

Era a explosão do forró universitário, que invadia os espaços para grandes shows na cidade de São Paulo, como Credicard Hall, Via Funchal e Palace, atraindo um público bem diferente daquele anterior, composto pelos nordestinos e seus descendentes. Para estes, havia sido criado, em 1991, o Centro de Tradições Nordestinas, no bairro do Limão. Já em pleno século 21, o forró vai bem, obrigado. Quem atesta é o The New York Times. Em reportagem publicada em 2006, o jornalista Seth Kugel chamou o forró de “música country brasileira nascida no sertão nordestino” e estabeleceu comparações para o entendimento de seus leitores: “Samba e bossa-nova são as faces internacionais da música brasileira, e o funk das favelas pode traduzir com fúria o Rio de Janeiro, mas nem as boates mais moderninhas resistem a tocar um ou dois forrós ao longo da noite”.

Herbert Carvalho Paula Seco
Herbert Carvalho Paula Seco