O ano de 2022 se estabeleceu como singular para a música popular brasileira, em razão da efervescência causada pelas celebrações dos 80 anos de quatro de seus maiores expoentes: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Paulinho da Viola. O impacto seria ainda maior se as vidas e as carreiras de Nara Leão e Tim Maia, nascidos também em 1942, não tivessem sido precocemente abreviadas.
Qual o traço mais característico daquele ano que nos legou tamanha safra de talentos? Incerteza, para resumir numa palavra. O mundo vivia, então, uma atmosfera sinistra, diante da possibilidade real e assustadora de vitória das forças nazistas e fascistas na Segunda Guerra Mundial.
O Brasil, com 40 milhões de habitantes, na vasta maioria analfabetos, vivia as contradições de um país que deixava de ser rural para se industrializar e urbanizar. O Estado Novo de Getúlio Vargas apresentava duas faces: uma ditatorial, com parlamento fechado, censura e prisões lotadas de opositores; outra de avanço nos direitos trabalhistas e na criação de uma identidade nacional que projetaria o samba e o futebol como símbolos perenes.
Brasil, país do Futuro, anunciava o título do relato ufanista, embevecido com a realidade brasileira, do escritor austríaco Stefan Zweig, refugiado por estas bandas e que, em seguida, seria encontrado morto em Petrópolis (RJ), abraçado à sua mulher, após tomarem veneno.
Também o cineasta estadunidense Orson Welles deixara-se encantar pela paisagem e a civilização mestiça destes trópicos. Os filmes de Carmem Miranda nos Estados Unidos e o personagem Zé Carioca, de Walt Disney, seriam os símbolos da “política da boa vizinhança”, anunciada na III Conferência Pan-Americana, realizada no Rio de Janeiro.
Os principais sucessos musicais de 1942 foram os sambas Ai que saudades da Amélia (Ataulfo Alves e Mário Lago), Ave Maria no Morro (Herivelto Martins) e Praça Onze (Herivelto Martins e Grande Otelo), além da batucada Nega do Cabelo Duro (Rubens Soares e David Nasser) – que, hoje, seria execrada pelo politicamente correto.
A programação da rádio, porém, seria muitas vezes interrompida para o Repórter Esso anunciar a dezena de navios brasileiros afundados por torpedos alemães, com centenas de vítimas fatais. No mês de agosto, o Brasil entra oficialmente na guerra, cujo espectro assombra as cidades: o bairro carioca de Copacabana fica por três noites em blecaute, prevenção contra possíveis ataques.
Filho de um médico e uma professora, Gilberto Passos Gil Moreira nasceu no dia 29 de junho, em Salvador. A maior influência de sua infância, passada em Ituaçu, no interior da Bahia, foi de uma avó, que o alfabetizou e o apresentou ao mundo dos livros, por meio da obra de Monteiro Lobato, o futuro membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Em contato com sanfoneiros e cantadores repentistas, desenvolve o desejo de ser músico, reforçado pelos sucessos de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, que ouve pela rádio, os quais, mais tarde, serão influências decisivas em suas composições.
Aos nove anos de idade está de volta à Salvador para estudar no Colégio Nossa Senhora da Vitória e se iniciar como instrumentista na Academia de Acordeon Regina. Em 1960, quando ingressa na Universidade Federal da Bahia (UFBA), ganha da mãe um violão de presente. Nessa época, conhece um jovem da sua idade, ao lado de quem iria protagonizar momentos memoráveis da Era dos Festivais e liderar o movimento tropicalista brasileiro.
Caetano Emanuel Viana Teles Veloso nasceu no dia 7 de agosto, em Santo Amaro (BA), quinto dos sete filhos de José Teles Veloso, o “Seu Zezinho”, funcionário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (Correios), e Claudionor Viana Teles Veloso, a “Dona Canô”.
Aos quatro anos, o garoto, que ouvia pela rádio e adorava música brasileira, inspirou-se na valsa Maria Bethânia, sucesso do compositor Capiba na voz de Nelson Gonçalves, para escolher o nome da irmã mais nova, hoje uma de nossas mais célebres cantoras.
Habituado aos sambas de roda e pontos de candomblé do Recôncavo Baiano, deixou-se arrebatar pela batida do violão de João Gilberto, que ouviu pela primeira vez aos 17 anos. Marcada pela bossa-nova, a carreira do compositor terá como característica a polêmica, a beleza poética e a renovação constante.
Nascidos na ditadura do Estado Novo, Gilberto Gil e Caetano Veloso são presos e exilados pela ditadura militar. Nada disso, porém, abala a trajetória da Tropicália, que, lançada na década de 1960, tornou-se um dos mais fecundos movimentos culturais da história do Brasil.
Carioca de nascimento, mas mineiro de coração, Milton Nascimento veio ao mundo em 26 de outubro, em uma favela no bairro da Tijuca. Registrado como filho de mãe solteira, tinha apenas dois anos quando ficou órfão. Adotado por uma família de Três Pontas (MG), recebeu o apelido de “Bituca” ainda criança, em razão do bico que fazia ao ser contrariado.
Incentivado pela mãe adotiva, professora de música, aos 13 anos era crooner de um conjunto de baile ao lado do vizinho e futuro parceiro Wagner Tiso. Transferiu-se para Belo Horizonte, em 1963, e, de lá, projetou-se nacionalmente por meio de canções como Maria, Maria, hino de louvor à força da mulher brasileira, Coração de estudante – trilha sonora das Diretas Já, em 1984 – e Canção da América, entoada no enterro de Ayrton Senna.
Paulo César Batista de Faria, por sua vez, nasceu no bairro (também) carioca de Botafogo, em 12 de novembro, filho primogênito do violonista Benedito Cesar Ramos de Faria, integrante da primeira formação do grupo de choro Época de Ouro. Teve a oportunidade de crescer ouvindo sambas e choros tocados por Pixinguinha e Jacob do Bandolim, mas seu pai não queria que seguisse a carreira, por achar muito difícil alguém viver de música no País.
Empregado numa agência bancária aos 19 anos, seu talento ao cavaquinho e violão acabaram por fazer dele presença obrigatória nas rodas de samba da Portela – escola da qual se tornaria baluarte e fundador de sua Velha Guarda, a primeira do País. Com o nome artístico de “Paulinho da Viola”, o autor de Foi um rio que passou em minha vida chega aos 80 anos fazendo de sua voz suave e harmonias sofisticadas símbolos de um povo que não desiste de cantar e esperar por dias melhores.