Foi preciso a decantação do tempo para que a Semana de Arte Moderna transcendesse as pequenas notas – na maioria, negativas – publicadas nos jornais paulistanos de 1922 e ganhasse retumbante espaço nos livros de História. E, claro, demonstrasse seu poder para inventar o próprio fazer artístico nacional. ESTE CONTEÚDO ESTÁ PUBLICADO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO #467 IMPRESSA DA REVISTA PB. A VERSÃO DIGITAL ENCONTRA-SE DISPONÍVEL NA BANCAH.
Na época, havia duas interpretações sobre aquele estranho festival ocorrido no Theatro Municipal: de um lado, os organizadores e artistas participantes, para quem o evento havia sido um tremendo sucesso. De outro, a percepção da imprensa e da sociedade atenta à cultura, que decretavam um fiasco. “Curiosamente, as duas alas tiveram razão”, comenta o crítico de arte Marcos Rizolli, pesquisador e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “O fiasco, sintoma do grande estranhamento causado pelas apresentações artísticas, tornou-se germe de uma nova cultura.”Contudo, se respeitar o tempo é necessário para compreender aquela semana, também é preciso situá-la no tempo. Ela ocorreu em um Brasil de 30 milhões de habitantes, que crescia e se modernizava ao ritmo das levas de imigrantes que desembarcavam desde o fim do século anterior, com trajetórias e conhecimentos diversos. Era um país movido pela cafeicultura e, portanto, com a capital do dinheiro começando a se deslocar para São Paulo. A capital paulista tinha 600 mil habitantes, metade da então capital federal, Rio de Janeiro.
E são os filhos da elite aqueles que passaram a produzir uma arte antenada com o suprassumo do que acontecia na Europa. Desde a segunda metade da década de 1910, as obras artísticas não negavam suas influências – as tais vanguardas como o cubismo e o expressionismo, a atonalidade e a ruptura com a métrica, o futurismo. “É impreciso dizer que o Modernismo ocorre a partir de 1922. Havia uma inquietação latente nos artistas naquele começo do século 20. Eles começaram a se modernizar, entre aspas, e foi isso que chegou à Semana de 22”, avalia a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, professora da Universidade de São Paulo (USP) e ex-diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea (MAC), da USP.
Aracy cita como exemplo a famosa e polêmica mostra realizada por Anita Malfatti (1889-1964). Entre 1910 e 1913, a artista viveu em Berlim, onde teve contato com trabalhos de diversas correntes europeias e tomou aulas com o impressionista Lovis Corinth (1858-1925). Em 1917, depois de uma outra temporada fora, desta vez nos Estados Unidos, Malfatti promoveu uma exposição de 53 de suas obras em São Paulo, dentre elas, A boba. Eram trabalhos que já traziam um inovador estilo, com características modernistas. A elite cultural preestabelecida torceu o nariz. Críticas foram pesadas. A mais contundente seria publicada pelo escritor Monteiro Lobato (1882-1948), em 20 de dezembro daquele ano, no jornal O Estado de S. Paulo.
Conhecido como “Paranoia ou mistificação?”, o texto, na verdade intitulado de “A propósito da exposição Malfatti”, teceu críticas duras à estética modernista. Para Lobato, era um tipo de arte “formada pelos que veem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva”. A repercussão negativa acabou unindo os modernistas, que passaram a defender Malfatti. Era o embrião da Semana de Arte Moderna.
A ideia foi tomando forma, tanto que, em 1920, um grupo já se debruçava sobre a organização. Agitador cultural por excelência, o poeta Oswald de Andrade (1890-1954) publicou no jornal Correio Paulistano uma enigmática provocação: “Cuidado, senhores da camelote, a verdadeira cultura e a verdadeira arte vencem sempre. Um pugilo pequeno, mas forte, prepara-se para fazer valer nosso Centenário”. No time dos modernistas, estava também o escritor Mário de Andrade (1893-1945); o jornalista, poeta e advogado Guilherme de Almeida (1890-1969); o poeta e político Ronald de Carvalho (1893-1935); o jornalista, escritor e advogado Menotti Del Picchia (1892-1988); e o sociólogo, escritor e pintor Sérgio Milliet (1898-1960).
Os modernistas pretendiam um evento marcante, em pleno ano em que as atenções estariam voltadas à celebração do primeiro centenário da Independência. O lugar perfeito seria o Theatro Municipal, casa de espetáculos inaugurada em 1911, no centro do município paulistano, e onde o rigor clássico era a norma, condizente com as apresentações de ópera que punham a capital paulista no circuito mundial das companhias do gênero. Um entretenimento importado que alimentava o status quo das famílias endinheiradas. Contudo, ainda que rebeldes, estes agitadores culturais eram frutos das elites. E, neste sentido, foi a boa rede de relacionamento deles que garantiu que o festival ocorresse. A despeito da programação e da postura iconoclastas, houve apoio dos governos estadual e municipal. O aluguel do espaço, no total de 847 mil-réis, foi custeado por um mecenas, o advogado e escritor René Thiollier (1882-1868).
A farra artístico-literária ficou marcada para os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922. De acordo com registro do jornal O Estado de S. Paulo, dois dias antes, “a procura de bilhetes” já era grande. Na abertura oficial, o escritor e diplomata Graça Aranha (1868-1931) fez uma conferência um tanto confusa, em defesa da nova arte que era ali apresentada, oficialmente. “Para muitos de vós, a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje é uma aglomeração de horrores”, afirmou ele. “Aquele gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida, se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros horrores vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do passado.”
“Para estes retardatários, a arte ainda é o belo. Nenhum preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da beleza”, pontuou Aranha, para uma plateia lotada. Nos demais ambientes do municipal, obras de arte modernistas ficavam em exposição. A segunda noite teve a renomada pianista Guiomar Novaes (1894-1979), que desafiou os organizadores ao executar também clássicos consagrados, e um sarau poético que despertou vaias e algazarra. Houve rebuliço principalmente quando Ronald de Carvalho leu Os sapos, um poema-crítica de Manuel Bandeira (1886-1968) contra o movimento parnasiano. Na última noite, houve uma apresentação de Villa-Lobos (1887-1959). De casaca, mas com um pé calçado e outro de chinelo, o maestro foi vaiado pelo público, que viu nisso uma atitude debochada e desrespeitosa. A verdadeira razão era outra: um calo inflamado que o impossibilitava de vestir o calçado.