Thiago de Mello: cantando no escuro

30 de março de 2022

Ele cantou a liberdade e a floresta. Vestido de branco, cabelos soltos ao vento, exorcizava tiranias e desmatadores com a energia de um xamã. Preso e exilado após o golpe de 1964, percorreu o mundo para voltar ao Amazonas natal e traduzir em poesia a defesa da natureza.

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Já doente, não pôde participar da homenagem prestada pela 34ª Bienal de São Paulo,  que escolheu como título emblemático dos sombrios tempos atuais o verso “Faz escuro mas eu canto”, extraído de seu poema Madrugada Camponesa. Aos 95 anos, morreu, dormindo, no dia 14 de janeiro de 2022, na mesma Manaus onde passou a infância e a adolescência, deixando o legado de uma vintena de livros de poesia e prosa.

Nascido em 30 de março de 1926 no município de Barreirinha (AM), no Baixo Rio Amazonas, Amadeu Thiago de Mello mudou-se com a família para a capital amazonense ainda menino. “Aqui descobri a força do sentimento solidário e a certeza de que o ser humano nunca está sozinho”, escreveu no livro de memórias Manaus, amor e glória.

Em 1946, ingressa na Faculdade Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, mas abandona o curso à medida que avança na poesia. Em 1950, o poema Tenso por meus Olhos é publicado na primeira página do Suplemento Literário do Correio da Manhã.

No ano seguinte, seu primeiro livro, Silêncio e Palavra, é aclamado com entusiasmo pela crítica. “Somente sou quando em verso”, autocaracteriza-se o autor estreante na abertura do poema Rumo, destacado por Álvaro Lins, membro da Academia Brasileira de Letras, que não hesita em proclamar: “Com 26 anos e um só livro publicado, o Sr. Thiago de Mello bem demonstra, todavia, que já se acha em condições de situar-se na primeira linha da nossa poesia contemporânea”.

No Chile, escreve os versos antológicos que, 60 anos depois, ainda guardam todo o sentido: “Faz escuro mas eu canto, /porque a manhã vai chegar. /Vem comigo companheiro, /a cor do mundo mudar.” No álbum Manhã de liberdade, a cantora Nara Leão gravou uma versão desse poema, musicada pelo sambista Monsueto.

Ainda nos anos 1950, lança mais dois livros de poemas, Narciso Cego e A Lenda da Rosa, que o consagram, ao lado de João Cabral de Melo Neto e Paulo Mendes Campos, entre outros, como integrante da chamada Geração de 45. Após breve interregno como diretor do Departamento Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro, segue para um périplo pela América Latina, onde exerce o cargo de adido cultural, inicialmente, na Bolívia, em seguida, no Peru e, finalmente, no Chile. Neste país, escreve os versos antológicos que, 60 anos depois, ainda guardam todo o sentido: “Faz escuro mas eu canto, /porque a manhã vai chegar. /Vem comigo companheiro, /a cor do mundo mudar.” No álbum Manhã de Liberdade, a cantora Nara Leão gravou uma versão desse poema, musicada pelo sambista Monsueto.

Em 31 de março de 1964, acompanha, em Santiago, ao lado do poeta chileno Pablo Neruda e do futuro presidente do país Salvador Allende, as notícias do golpe contra o presidente João Goulart. Ao ver imagens do ex-deputado comunista Gregório Bezerra espancado por militares e arrastado por uma corda pelas ruas do Recife, sua indignação explode na mais poética defesa já feita dos direitos humanos, Os Estatutos do Homem, sua obra mais famosa, traduzida para mais de 30 idiomas.

Com o subtítulo  Ato Institucional Permanente e dedicado ao jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, o poema tem 14 “artigos”. No artigo I, “Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida e que, de mãos dadas, trabalharemos todos pela vida verdadeira”. E no artigo final: “Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante, a liberdade será algo vivo e transparente, como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem”. Também esta obra foi musicada, pelo compositor erudito Cláudio Santoro.

Afastado do serviço diplomático, Thiago de Mello volta ao Brasil e participa da organização de um protesto de artistas e intelectuais contra a ditadura na frente do Hotel Glória, durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada no Rio de Janeiro. No ato, todos foram presos, menos ele, que, solidário, fez questão de se apresentar ao quartel do Exército para se juntar aos demais companheiros.

Thiago de Mello volta ao Brasil e participa da organização de um protesto de artistas e intelectuais contra a ditadura, durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), no Rio de Janeiro. No ato, todos foram presos, menos ele, que, solidário, fez questão de se apresentar ao quartel do Exército para se juntar aos demais companheiros.

Quando o AI-5 é baixado, torna ao Chile para dirigir a comunicação do programa de reforma agrária de Allende. Na ocasião, aproveita para estreitar laços com escritores e poetas latino-americanos, como Neruda, os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges e o colombiano Gabriel García Márques, que o chamava de “guru grande”.  Dessa colaboração nasce a tarefa a que se propôs: ampliar a integração cultural da América Latina ao verter para o português os Poetas da América de Canto Castelhano, título do livro com cerca de 400 poemas, de 120 poetas de países da região, e que lhe custou 20 anos de trabalho.

Após a derrubada de Allende, em 1973, o poeta vaga pela Europa em países como Alemanha, França, Espanha e Portugal, desfrutando da projeção angariada por sua poesia engajada. Ao voltar do exílio, no final dos anos 1970, decide se estabelecer em Barreirinha, em uma casa-palafita especialmente projetada para ele por Lúcio Costa, um dos criadores de Brasília. Abraça, então, a causa ecológica.

Na virada do século 20 para o 21, publicou Amazonas, pátria da água, um manifesto em defesa da natureza e da Amazônia. Nele, Thiago adverte: Enfim te descobrimos. Foi preciso/que as águas mais azuis apodrecessem, / que os pássaros parassem de cantar, / que peixes fabulários se extinguissem, /e tua pele verde fosse aberta/ pelas garras de todas as ganâncias. No prefácio, ele descreveu, de maneira premonitória, o quadro que atualmente se configura: “Se for esperar pelo governo, a floresta estará com os seus dias contados, devastada (tenho vontade de escrever assassinada), não pelo furor das serras motorizadas, dos tratores e dos incêndios criminosos, mas pela fúria da má-fé, da incompetência e do descaso.”

O também amazonense e escritor Milton Hatoum resume a fonte de inspiração do conterrâneo. “Thiago não invocava a Amazônia como algo exótico ou pitoresco. Ele era possuído, habitado pela região onde nasceu. Apesar da sua projeção nacional e internacional, ele voltou para a Amazônia, construiu a sua casa no interior e, aqui, viveu e morreu.”

Herbert Carvalho Estêvão Vieira
Herbert Carvalho Estêvão Vieira