José Flores de Jesus completou, recentemente, cem anos de seu nascimento. Foi em 16 de setembro de 1921, no bairro de Inhaúma, Zona Norte do Rio de Janeiro. Cresceu na casa do avô flautista e pianista que tocava com Pixinguinha e Cândido das Neves. Nesse ambiente musical repleto de choros, valsas e serestas, o menino Zequinha espiava tudo muito quieto.
“Daí o apelido ‘Zé Quietinho’, que depois virou Zéquéti e, décadas mais tarde, com a voga dos nomes em K (Kruschev, Kennedy, JK) foi assumido definitivamente como Zé Kéti”, explica Nei Lopes, autor da biografia Zé Kéti – Perfis do Rio (Editora Relume Dumará, 2000).
Influenciado pelos sambas de Noel Rosa, que ouvia pelo rádio, nos anos 1940, torna-se integrante da ala dos compositores da Portela, escola de samba à qual esteve ligado durante toda a vida. Ao contrário de outros sambistas contemporâneos, que só receberiam reconhecimento público em idade mais avançada, como os mangueirenses Cartola e Nelson Cavaquinho, Zé Kéti transpõe os limites do terreiro com “Leviana”, seu primeiro sucesso comercial, gravado em 1954 por Jamelão.
O samba que projeta, porém, seu nome para todo o País e o mundo é a “Voz do Morro”, incluído na trilha de Rio 40 graus (1956), filme de Nelson Pereira dos Santos, considerado precursor do Cinema Novo por seu foco na temática social. Enquanto a câmera passeia pelos principais pontos turísticos da cidade, a letra da composição de Zé Kéti exalta o mais carioca dos ritmos: “Eu sou o samba/ sou natural aqui do Rio de Janeiro/ sou eu que levo a alegria/ para milhões de corações brasileiros. Eu sou o samba/ a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor/ quero mostrar ao mundo que tenho valor/ eu sou o rei do terreiro…”.
Nesse filme – assim como na produção seguinte de Nelson Pereira Santos, Rio, Zona Norte –, além de contribuir com suas composições, como “Malvadeza Durão”, Zé Kéti tem participação como ator. Inspirado em sua própria vida, Rio, Zona Norte retrata, pela primeira vez no cinema brasileiro, o cotidiano dos morros e tem como personagem principal um compositor popular, vivido pelo ator Grande Otelo.
A década de 1960 representa o auge de sua carreira: Zé Kéti torna-se o principal interlocutor do samba na bossa-nova. Dois eventos, em que foi figura de proa, estabelecem o intercâmbio musical entre as Zonas Norte e Sul do Rio: o restaurante Zicartola e o show Opinião.
Acrônimo de Zica e Cartola, o espaço, concebido pelo célebre casal patrono da Mangueira para unir gastronomia e samba, funcionou no sobrado número 53 da Rua da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, durante vinte meses (entre 1963 e 1965), tempo suficiente para deixar sua marca na história da música popular brasileira. Lá, Zé Kéti foi relações públicas e diretor artístico, responsável por criar, com o poeta Hermínio Bello de Carvalho, a “Ordem da Cartola Dourada”, para homenagear grandes nomes como Tom Jobim, Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro. Foi lá também que o bancário Paulo César Batista de Faria se assumiu como o compositor Paulinho da Viola.
Finalmente, no Zicartola, estabeleceu-se uma aliança entre o samba do morro e a ala social e politicamente engajada da bossa-nova, capitaneada por Carlos Lyra, expoente do Centro Popular de Cultura (CPC) ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE). O resultado imediato foi o show Opinião, dirigido por Augusto Boal, com texto de Paulo Pontes e Oduvaldo Viana Filho – todos expoentes do CPC da UNE – que logo se transformou na primeira resposta musical ao golpe militar de 1964.
Zé Kéti, além de autor da música-título do espetáculo, dividia o palco com o também compositor João do Vale e com a musa da bossa-nova, Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia). Canção de protesto explícito, a letra de“Opinião” ecoava a resistência contra a remoção de favelas que se realizava no então Estado da Guanabara: “Podem me prender/ podem me bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião/ daqui do morro, eu não saio não”.
O sucesso do samba e do espetáculo fez com que “Opinião” virasse até nome de um jornal de oposição ao regime militar, além de batizar também um teatro e o segundo LP de Nara Leão.
De acordo com Nei Lopes, em termos de parceria musical, a aproximação entre Zé Kéti e Carlos Lira rendeu apenas o “Samba da Legalidade”, cujo título remete à campanha que se travava no final do governo João Goulart para retirar da clandestinidade o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Apesar de engajado ao ponto de penetrar à sorrelfa numa embaixada para se despedir de amigos que partiam para o exílio após o golpe, Zé Kéti não chegou a sofrer violência física ou moral por parte dos novos detentores do poder. Isso, porque, numa época em que a polarização ainda se dava de modo civilizado, seu talento era reconhecido por adversários, como o líder direitista Carlos Lacerda, que cantava seus sambas e o convidava para almoçar, saudando: “Chegou a turma da esquerda festiva”.
Em paralelo à música, que nunca lhe rendeu o suficiente, Zé Kéti deu duro para viver, desde criança. Abandonou os estudos para trabalhar, em fábrica de calçados e numa pedreira. Vendeu laranja em campo de futebol e teve barraca de peixe na feira. Chegou a sentar praça na Polícia Militar até que, durante o governo de Juscelino Kubitschek, conseguiu um emprego público no Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Trabalhadores em Transportes e Cargas (Iapetec).
Antes que a noite escura do AI5 caísse sobre o País, mais uma obra-prima de sua lavra se transformaria no hino dos bailes de carnaval. Inspirada na commedia dell’arte, a marcha-rancho “Máscara Negra”, sucesso absoluto no carnaval de 1967, canta com suave lirismo o amor de Arlequim por Colombina, conquistando para sempre o coração dos foliões. Morto em 1999 aos 78 anos, após amargar no ostracismo as últimas décadas do século 20, Zé Kéti viveu toda a dimensão política e cultural de seu tempo. Seu samba, que dizia “acender as velas já é profissão”, ainda ecoa a realidade das centenas de milhares de brasileiros mortos na pandemia.