Está faltando comida na mesa de mais brasileiros. A piora no quadro de segurança alimentar vem ocorrendo desde 2018, quando esse índice caiu quase 14% em relação a 2013, totalizando 63,3% da população segura. Com a pandemia, a fome avançou nos lares do País, com 44,8% tendo acesso regular a alimentos de qualidade, menor patamar histórico da medição oficial. No fim do ano passado, 116,8 milhões de pessoas conviviam com alguma insegurança. As regiões rurais do Norte e do Nordeste foram as mais afetadas.
“O combate à fome é uma luta sem fim. Os países que têm sucesso não erradicaram a fome, porque ela retorna assim que exista uma instabilidade, e os mais fragilizados são os primeiros a sentir”, diz Daniel Balaban, representante do Programa Mundial de Alimentos (PMA) da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil, ao jogar luz sobre a questão da fome, uma mazela brasileira que, nos últimos sete anos, se acentuou para os mais vulneráveis.
O enfrentamento da fome está presente na agenda do Estado desde o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), que investiu em programas de nutrição escolar, que viriam a culminar no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), em 1979. Sete anos antes, os militares implantaram o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan). Após a redemocratização, um avanço significativo aconteceu em 1992, quando o governo de Itamar Franco (1992-1994) implementou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Os governos seguintes não apenas fortaleceram as ações dos antecessores, como elaboraram as próprias iniciativas. Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) criou o Programa Comunidade Solidária e o Guia alimentar para a População Brasileira, que dita as diretrizes nutricionais para a elaboração de políticas públicas, inclusive para a merenda escolar. Nos anos Lula (2003-2011), o governo colocou de pé o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Fome Zero e o Bolsa Família (que unificou uma série de programas sociais, inclusive o Cartão Alimentação). No mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016), o governo federal instituiu o Brasil Sem Miséria.
Estas iniciativas garantiram uma evolução gradual da segurança alimentar no País, sentida a partir de 2004, quando 64,8% da população estavam em situação segura. Cinco anos mais tarde, o índice subiu para 69,6%, atingindo 77,1% em 2013 – maior marca da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). No ano seguinte, a ONU anunciou que o Brasil havia deixado o Mapa da Fome e que 82% dos brasileiros estavam em segurança alimentar [veja o gráfico com o histórico dos níveis de insegurança alimentar].
Na época, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) listou fatores que levaram o Brasil ao resultado promissor: o aumento da oferta de alimentos, que, de 2002 a 2013, elevou em 10% a disponibilidade de calorias para a população; crescimento da renda dos mais pobres, com elevação real do salário mínimo em 71,5% e geração de emprego para 21 milhões de pessoas; e acesso a refeições completas para 43 milhões de crianças e jovens nas escolas, além de melhores práticas de governança, transparência e maior participação da sociedade no Consea.
Balaban, que também é diretor do Centro de Excelência contra a Fome, explica que a soma das crises econômica e política a partir de 2013 provocou a diminuição no investimento da distribuição alimentar. “A fome retornou ao cenário brasileiro, uma vez que houve cortes orçamentais em programas assistenciais que garantiam o acesso dos alimentos às pessoas em situação de extrema pobreza”, afirma.
O investimento federal no PAA atingiu R$ 1,1 bilhão em 2012, mas foi reduzido para R$ 232 milhões em 2018. A merenda escolar, que recebia R$ 4,7 bilhões em 2010, sofreu redução para R$ 3,9 bilhões em 2019. O Consea, que gerenciava as políticas públicas de combate à fome foi extinto em janeiro de 2019, recriado em maio do mesmo ano, porém, sem a mesma capilaridade.
Um retrato recente da mesa dos brasileiros mostra que, em 2018, houve queda de 13,8 pontos porcentuais na segurança alimentar no Brasil, com 63,3% das pessoas seguras, na comparação com 2013 (77,1%), segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2020, o reflexo da pandemia ocasionou nova queda substancial, quando o índice chegou ao seu menor patamar histórico (44,8%), de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), que deu continuidade ao levantamento da POF feito até 2013. No fim do ano passado, 116,8 milhões de pessoas conviviam com algum grau de insegurança alimentar. Destas, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente, e 19 milhões de pessoas – mais do que a população do Chile – conviviam com a fome.
O avanço da extrema pobreza (pessoas que vivem com menos de R$ 246 por mês) está intimamente ligado ao aumento da insegurança alimentar por aqui. Em 1992, 34,81% da população viviam na faixa da extrema pobreza. Este índice foi sendo gradualmente reduzido e atingiu o menor patamar em 2014, com 8,38%. Entretanto, de 2015 para cá, a tendência de queda se inverteu. Em 2019, alcançou 10,97%, e em fevereiro de 2021, 12,83%. Os números são da Fundação Getulio Vargas (FGV) Social.
Segundo Balaban, o caso brasileiro é peculiar. Isso porque a insegurança alimentar grave acontece quando o indivíduo não tem dinheiro suficiente para comprar comida, diferentemente dos países que convivem com a fome por falta de recursos estruturais, como limitações hídricas que impossibilitem o plantio ou, até mesmo, guerras que fragilizem populações por longos períodos.
Apesar dos percalços, um relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), divulgado em dezembro do ano passado, mostrou que 23 milhões de cidadãos deixaram de entrar na extrema pobreza no auge da pandemia graças ao auxílio emergencial criado pelo governo federal. O documento registra que, sem o benefício – que chegou a 68 milhões de brasileiros –, 14,6% da população teriam ingressado na faixa da extrema pobreza.
Entre 2019 e 2020, a extrema pobreza caiu 6,45 pontos percentuais (p.p.), registrando 4,52%. O arrefecimento, porém, foi interrompido pela suspensão temporária do auxílio ao fim de 2020, sendo retomado em março deste ano com valores reduzidos: R$ 44 bilhões, ante os R$ 295 bilhões de 2020. Procurado pela reportagem da PB, o Ministério da Cidadania afirmou que, até julho de 2021, foram repassados R$ 18 bilhões para 39,2 milhões de famílias contempladas com o benefício, e o governo ainda trabalha no processamento de cadastros a partir das informações mais recentes disponíveis nas bases de dados. O ministério relatou, ainda, que tem adotado as medidas necessárias para alcançar, por meio do auxílio, as famílias em situação de maior vulnerabilidade, de forma a assegurar uma renda mínima para esta parcela da população, respeitando o limite orçamentário estabelecido pela Emenda Constitucional (EC) 109/2021, no valor de R$ 44 bilhões.
O auxílio emergencial teve um papel importante para a sobrevivência das famílias em situação de extrema vulnerabilidade, mas as interrupções nos repasses dificultaram o dia a dia dos lares atendidos. A opinião é de Rosana Salles-Costa, professora associada do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pesquisadora da Rede Penssan. “Precisamos aumentar o auxílio para um valor que seja adequado à aquisição de alimentos, bem como retomar as políticas públicas de combate à fome no País”, aponta.
Desde abril de 2020, segundo a pasta, o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família se mantém acima de 14 milhões, a maior média da história do programa. Entre janeiro e abril, mais de 600 mil novas famílias ingressaram no programa, de acordo com o governo. Até o fechamento desta edição, em meados de julho, o ministério trabalhava na reformulação do programa, prevendo a ampliação do número de lares contemplados, além de reajuste nos valores dos benefícios pagos.
A pesquisadora da UFRJ credita o sucesso das políticas públicas à integração de iniciativas que identificavam as pessoas mais vulneráveis. Por meio do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), utilizado também no registro dos beneficiários do auxílio emergencial, é possível observar onde está a maior vulnerabilidade e enviar recursos para essas famílias. “Mediante a identificação, os conselhos municipais e estaduais faziam relatórios periódicos para acompanhar os grupos vulneráveis e dialogavam diretamente com o governo federal a fim de pensar ações conjuntas para o combate à fome”, afirma Rosana.
A pandemia revelou cicatrizes históricas nacionais. As regiões rurais do Norte e do Nordeste apresentaram os mais expressivos níveis de insegurança alimentar durante a pandemia: 63,2% e 71,9%, respectivamente, vivem em situação de insegurança alimentar leve, moderada ou grave, de acordo com o inquérito da Rede Penssan. Em 2018, a POF, do IBGE, indicava que a insegurança alimentar atingia 57% das famílias do Norte do País (6,2 p.p. menor do que 2020), e 50,3% dos cidadãos do Nordeste (21,6 p.p. inferior ao registrado durante a pandemia).
O desemprego também tem relação direta com a falta de comida: sete em cada dez desempregados vivem com algum grau de insegurança alimentar. As mulheres figuram entre os perfis mais afetados: 11% estão em situação grave de insegurança alimentar. Indivíduos com idade entre 50 e 64 anos (11,7%), analfabetos ou com ensino fundamental incompleto (14,7%) e pessoas de pele preta ou parda (10,7%) também são destaques negativos desta mazela nacional.
“Quando se está com fome, o indivíduo não consegue buscar um bom emprego, iniciar um curso profissionalizante ou ter uma grande ideia para criar um negócio de sucesso. Ele só pensa em comer para não morrer. Somente com acesso para suprir as necessidades básicas, os cidadãos podem pensar além da própria sobrevivência”, reflete Balaban, ao relacionar a fome com o desenvolvimento nacional.
A elevação dos preços dos alimentos no Brasil impossibilitou as pessoas mais pobres de terem acesso aos itens mais nutritivos, aumentando ainda mais o abismo da insegurança alimentar, principalmente nas grandes cidades. Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e da Fundação de Proteção de Defesa do Consumidor de São Paulo (Procon-SP), divulgados em maio deste ano, a cesta básica na capital paulista corresponde a R$ 1.030,47 – o equivalente a 98,6% do salário mínimo nacional (R$ 1.045) e mais de quatro vezes a renda mensal de uma pessoa que vive na faixa da extrema pobreza.
O peso dos alimentos mudou os hábitos dos brasileiros, e o consumo de alguns itens, como a carne bovina, que registrou, em maio deste ano, o menor consumo em 25 anos, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A expressiva queda no consumo da proteína foi precedida pela alta de 38% nos preços das carnes no Brasil no mesmo mês de maio, no acumulado dos últimos 12 meses, de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA), aferido pelo IBGE. Muitas regiões sofreram mais com o aumento dos preços, como a região metropolitana de Belo Horizonte (MG), com elevação de 43,88%, e Rio Branco (AC), que registrou alta de 59,27%.
Segundo o IBGE, a causa do aumento é a elevação do dólar, que fechou 2020 com alta acumulada de 29,33%, cotado acima dos R$ 5. Com a desvalorização do real, as empresas produtoras de alimentos voltaram toda a sua carga à exportação, diminuindo a oferta de proteína ao ambiente doméstico.
Para Betzabeth Slater Villar, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), a obesidade é uma das consequências mais graves do aumento da insegurança alimentar e do baixo acesso aos alimentos saudáveis. “A flutuação de preços dos alimentos in natura foi muito mais elevada do que os ultraprocessados, ou seja, com a queda da renda das pessoas, muitas tiveram de optar pelos alimentos menos saudáveis para sobreviver”, afirma. Aliados a isso, estão o sedentarismo, o aumento do consumo de bebidas alcoólicas e a elevação da ansiedade, provocados pelas restrições impostas pela pandemia.
De acordo com o Guia alimentar do governo, os alimentos processados, como os enlatados, e os ultraprocessados eram os mais caros, comparados aos produtos in natura. Contudo, da década de 2000 em diante, os preços dos ultraindustrializados vêm subindo menos do que os demais grupos e estima-se que, em 2030, os custos dos alimentos in natura e minimamente processados continuem crescendo (R$ 4,69/kg, em 2017, para R$ 5,24/kg, em 2030), enquanto os preços dos ultraprocessados devem decrescer (R$ 6,62/kg para R$ 4,34/kg), ao passo que os dos alimentos processados devem se manter estáveis.
A obesidade já é realidade para a maioria da população brasileira. Os dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), coletados em 2019 pelo IBGE em parceria com o Ministério da Saúde, revelaram que 96 milhões de brasileiros – 60,3% da população adulta do País – apresentam Índice de Massa Corporal (IMC) maior do que 25 kg/m2, classificados com excesso de peso. Os números relativos a 2020 (início da pandemia) e 2021 ainda não são conhecidos, mas os especialistas em nutrição acreditam que este porcentual de brasileiros obesos provavelmente aumente.
“Neste cenário, os adultos devem ter um aumento das doenças crônicas, e as crianças podem ter o desenvolvimento comprometido pela falta de acesso a alimentos saudáveis, em longo prazo”, afirma Rosana, professora da UFRJ. Enquanto durar as restrições sociais da pandemia, as crianças mais carentes serão fortemente impactadas, segundo ela, pois grande parte delas ainda tem na escola sua única alimentação diária. “Ainda não temos resultados de quão impactadas estão sendo as crianças fora da escola, mas, no médio prazo, será possível avaliar o dano causado pela pandemia e pela falta de políticas públicas para baratear os produtos saudáveis”, afirma.
Com o objetivo de um enfrentamento mais eficaz do combate à fome, na opinião de Balaban, o Brasil precisa mudar as matrizes econômicas e tributárias, que retiram mais recursos dos economicamente menos favorecidos. “A saída não é o assistencialismo, porque ele se torna um ciclo sem fim. Políticas públicas que insiram o indivíduo na sociedade, de fato, são muito mais eficazes do que dar uma quantia mensal para que ele não morra de fome”, pondera o executivo.