Círculo virtuoso

31 de maio de 2021

A pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira – Consumo Consciente, feita pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em 2020, revela que 38% dos consumidores entrevistados verificam se os produtos foram produzidos de forma ambientalmente correta. O número de pessoas que separa o lixo para a reciclagem cresceu de 47%, em 2013, para 55%, no ano passado

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A preocupação com a quantidade de resíduos sólidos produzida por todos nós e os impactos disso no meio ambiente está cada vez mais presente nas discussões estratégicas das grandes empresas. A maioria delas já desenvolve programas internos para coleta e destinação sustentável dos rejeitos. A iniciativa, além de ajudar a cuidar do planeta, colabora para a queda nos gastos dos negócios em médio prazo, pois diminui o desperdício, e fomenta um novo mercado: a economia circular.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) – Lei 12.305/10 – definiu as diretrizes e metas para a gestão e o gerenciamento dos resíduos sólidos no Brasil, sendo o fim dos lixões, em 2023, um dos seus principais objetivos. Ainda assim, dez anos depois, o País “patina” na redução de lixo gerado. De acordo com o Panorama dos Resíduos Sólidos 2020, feito pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), entre 2010 e 2019, o Brasil contabilizou aumento de 18% na geração de resíduos sólidos urbanos – passando dos 67 milhões para 79 milhões de toneladas anuais. Em 2020, houve novo aumento, com 79,6 milhões de toneladas de lixo.

O desafio é envolver todos neste processo e inserir hábitos mais sustentáveis em toda a cadeia produtiva e de consumo. A indústria, a primeira agente dessa cadeia, está investindo para diminuir desperdícios e formar uma rede de apoio para destinar corretamente os excedentes.

De acordo com pesquisa da CNI, em 2019, 76,5% das indústrias desenvolveram alguma iniciativa de economia circular, mesmo sem se darem conta do conceito. Entre as principais práticas, estão a otimização de processos para minimizar desperdícios (56,5%), o uso de insumos circulares oriundos da coleta seletiva (37,1%) e a recuperação de recursos com a reutilização dos componentes que, antes, eram descartados (24,1%).

Muitas empresas, cooperativas de recicladores e transportadoras, além de consultorias especializadas em sustentabilidade, surgiram para compor a economia circular, que engloba desde a coleta dos resíduos, a logística, a reciclagem ou a reutilização até a oferta dos novos produtos ao consumidor final.

Gustavo Finger, Rafael Dutra, Sérgio Finger e Renan Vargas, sócios da Trashin.

Resíduos 100% reciclados

A Vulcabras – empresa do setor de calçados, dona das marcas Mizuno Brasil, Olympikus e Under Armour – conseguiu implementar uma cultura sustentável, com iniciativas de redução do consumo de materiais, reúso e economia de água, reciclagem e responsabilidade social. Na unidade de Itapetinga (BA), a companhia conseguiu zerar o desperdício de insumos, reutilizando parte dos resíduos gerados na produção e destinando o restante às empresas parceiras.

“Para reciclar os resíduos, adotamos o sistema de economia circular. O EVA [Ethil Vinil Acetat], principal material usado na produção de calçados, descartado, torna-se matéria-prima para a produção de outros produtos, como tapetes e tatames. No caso dos tecidos, boa parte do material descartado abastece a indústria moveleira para a produção de sofás e outros produtos”, detalha Luiz Otávio Goi Junior, gerente de Qualidade, Segurança, Meio Ambiente e Saúde da Vulcabras. “Uma parte é reutilizada nas unidades da empresa pelas áreas de limpeza, e outra, processada e destinada à indústria cimenteira.”

O município baiano cedeu, ainda, um terreno de 30 mil metros quadrados para realizar o manuseio dos produtos reciclados. “A criação da área ambiental fez com que a Vulcabras desse um destino sustentável às quase 85 toneladas de resíduos produzidos pela unidade baiana. Hoje, a empresa recicla 100% desses resíduos”, afirma Goi. Participaram, da construção do espaço, 44 moradores da região em situação de vulnerabilidade socioeconômica capacitados pela empresa.

Custo x benefício

Luiz Otávio Goi Junior, gerente de Qualidade, Segurança, Meio Ambiente e Saúde da Vulcabras

O reúso e a economia de água na outra unidade da empresa em Horizonte (CE), que constitui uma estação de tratamento focada em aproveitamento de 100% do esgoto gerado pela Vulcabras (fábrica e escritórios), são responsáveis pela economia de 50 milhões de litros de água por ano. A água tratada é usada na própria unidade produtiva em sanitários, irrigação e serviços de limpeza em geral.

O investimento no projeto foi de R$ 2 milhões, porém, a empresa prevê um retorno de R$ 1,2 milhões ao ano com a economia da compra de água tratada e na geração de efluentes (resíduos líquidos descartados). A meta para este ano é reutilizar 100% de todo o efluente gerado na matriz produtiva.

Para realizar os projetos sustentáveis, a Vulcabras criou a Escola de Qualidade, em 2016, destinada à formação de auditores e embaixadores ambientais nas duas fábricas da companhia. “Os funcionários participantes foram capacitados pela área de Engenharia Ambiental da Vulcabras, bem como conscientizados para ajudar em projetos sustentáveis e de cidadania, levando este conhecimento para as comunidades do entorno”, diz Goi. Assim, foi possível criar uma cultura de sustentabilidade na empresa que envolvesse todos os colaboradores, além de oferecer uma alternativa de qualificação profissional.

Atualmente, todos os resíduos produzidos pela Vulcabras na unidade baiana abastecem a economia circular, enquanto 80% dos insumos descartados são reciclados na planta industrial cearense. A meta, segundo o gerente, é ampliar esse porcentual e atingir 100% nas duas unidades. “Com a reciclagem, reutilizamos em nossas operações mais de 323 toneladas de resíduos (plásticos, EVA e TPU) na fabricação de novos produtos. Com isso, diminuímos nosso impacto ambiental e reduzimos a compra de insumos para a produção, equilibrando o custo e o benefício.”

Todos ganham

A ideia de sustentabilidade só funciona se, na prática, cada cidadão fizer a sua parte. Com isso em mente, empresas de coleta e reciclagem vêm surgindo – e, assim, esperam levar a prática a todos os lugares do País.

A startup gaúcha Trashin é uma delas. Sua missão consiste em simplificar o processo de gestão de resíduos nas empresas e promover o empreendedorismo sustentável nas comunidades locais, que trabalham em parceria em toda a cadeia da reciclagem. “Realizamos um trabalho de conscientização com empresas e condomínios residenciais ou corporativos para analisar quais produtos podem ser reciclados. Na parte da coleta, temos parceria com transportadoras e motoristas autônomos. Já na triagem dos resíduos recicláveis, contamos com cooperativas, associações de reciclagem e empresas, que compram o material já separado para revendê-lo ao mercado”, relata Sérgio Finger, CEO da Trashin, que atua nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil.

A Trashin já coletou 1,6 tonelada de resíduos por ponto de coleta

Outro objetivo da startup é acabar com o paradigma de que sustentabilidade é coisa de grandes empresas, sendo necessários vultuosos investimentos. Finger explica que o valor do serviço da Trashin depende da quantidade de resíduos gerado pela empresa ou pelo condomínio. “Hoje, qualquer pessoa ou empresa pode aderir à sustentabilidade. Temos clientes multinacionais, com milhares de funcionários, mas também atendemos a pequenos escritórios, com apenas três colaboradores, que assumiram a causa sustentável e nos contrataram para retirar os resíduos sustentáveis uma vez por mês, por um valor que podem pagar.”

A empresa já atendeu mais de 250 mil pessoas, coletou 1,6 tonelada de resíduos por ponto de coleta, aumentou em 25% a renda das cooperativas parceiras e reaproveitou em torno de 74% dos resíduos coletados.

A Trashin também conta com programa de recompensa (cashback), com o retorno de 5% a 10% do valor dos resíduos recolhidos dos clientes, que podem ser utilizados em seus marketplaces para adquirir produtos de marcas parceiras. “Temos parceria com a P&G, por exemplo, na qual os clientes da Trashin podem trocar créditos por produtos de limpeza ou higiene pessoal da marca.”

Mudança de hábito

Ser um agente de transformação dos hábitos brasileiros sobre o meio ambiente motivou publicitária e cientista política Cláudia Pires a fundar a So+ma – programa de vantagens que convida moradores de comunidades de baixa renda a reciclar seus lixos em troca de benefícios, que vão de descontos em supermercado, alimentação básica e exames médicos a cursos profissionalizantes.

Junto com associações de moradores e cooperativas de catadores, a empresa identifica locais que tenham um potencial para melhorar a coleta e reciclagem de resíduos sólidos. Para isso, distribui pontos de coletas pelos bairros e firma parceria com empresas locais e cooperativa para fazer o processo de reciclagem. “O projeto surgiu da minha vontade de mudar o hábito desta camada da população, que não reciclava por falta de informação e de coleta seletiva ou porque não sabia que poderia, inclusive, economizar dinheiro com isso”, conta a idealizadora.

Cláudia Pires, fundadora da So+ma

Participantes do programa da So+ma podem usufruir dos benefícios dos pontos acumulados e melhorar a condição de vida. A empresa também dispõe de parcerias com o Poder Público em escolas, parques e praias, com ações de conscientização socioambiental e instalação de pontos de coletas de resíduos. Em pouco mais de seis anos de vida, a So+ma Vantagens contabiliza 6.344 famílias atendidas, R$ 176 mil economizados por elas – ao utilizar os benefícios – e quase 750 toneladas de resíduos (como plástico, metal, vidro, alumínio e embalagens cartonadas) convertidos em pontos e encaminhados à reciclagem.

Claudia comemora o fato de estar conseguindo reverter as dificuldades encontradas no início do projeto para atrair adeptos. Segundo ela, muitas pessoas não aderiam à reciclagem por sentirem vergonha. “No imaginário social, o resíduo carrega significados negativos, como lixo, sujeira ou algo sem valor. O desafio é ressignificar esta relação e mostrar para as pessoas que aquela garrafa PET, que iria para o lixo após o consumo de uma bebida, pode ser trocada por um pacote de arroz ou um curso profissionalizante.”

Filipe Lopes Divulgação Paula Seco
Filipe Lopes Divulgação Paula Seco