No último boletim Focus, uma espécie de termômetro semanal do mercado organizado pelo Banco Central (Bacen), esperava-se a indicação de um crescimento de 2,9% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2023, repetindo o mesmo resultado (já consolidado) do ano passado. Ao contrário do que costuma acontecer, foi uma previsão que se manteve durante todo o ano: basta observar que, em janeiro, a expectativa era de alta de 3%.
A análise dessa previsão, no entanto, varia significativamente. De um lado, há quem olhe para o desempenho do PIB de 2021, quando a economia brasileira cresceu 4,6%, e veja uma desaceleração tão intensa quanto sem ponto de parada ou até o próximo cenário de queda, como nos tempos da pandemia de covid-19. De outro, há quem comemore a resiliência do País mesmo depois da grave crise sanitária, sem contar o fato de o resultado de 2023 repetir alguns dos melhores anos recentes — na última década, o Brasil só cresceu acima de 3% duas vezes [gráfico].
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CRESCIMENTO DO PIB BRASILEIRO (%)
Contudo, há um consenso entre todos os analistas: o ponto do PIB será dado pela “questão fiscal”, que tomou a agenda pública (e econômica) deste ano.
Para o economista-chefe da consultoria Infinity Asset, Jason Vieira, a pauta econômica do primeiro ano do governo Lula rodeou o orçamento público tanto do presente quanto do futuro. “Ele continuou dando sinais claros de que pretende operar via receitas — e não pelos gastos, e isso por um período longo. Esse é o ponto. O País não está crescendo o quanto o governo gostaria e também não está gastando o quanto queria. Nesse sentido, a Reforma Tributária se tornou um problema, porque se trata de um governo tentando gastar em um contexto de desafios fiscais em que não é possível aumentar os impostos”, completa.
Na visão do economista, o resumo da questão fiscal tem, na verdade, outra síntese: a expectativa de um PIB mais fraco em 2024, cujo teto está em 1,5% no Focus. “Isso tem assustado a classe política e o governo. Ao contrário dos últimos crescimentos, não há mais inferência estatística que sirva de justificativa para desempenhos baixos, como foi na pandemia, quando um ano bom se justificava pelo ano anterior ruim”, lembra ele, usando como base a expansão de 4,6% do PIB de 2021 após uma queda parecida em 2020.
Ainda assim, Vieira vê sinais positivos na política institucional. “O Congresso foi um ponto de equilíbrio importante”, destaca, “e mesmo o governo conseguiu rechaçar todas as previsões muito pessimistas ou muito positivas, fazendo conciliações entre lados antagônicos”. Para Vieira, não é à toa que todos que, no começo de 2023, se pautaram pela política para prever o ano, errou.
Um relatório sobre as contas públicas do País produzido pelo economista André Sacconato, da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), aponta que o Brasil tem, hoje, um déficit de R$ 834 bilhões, o que representa uma fatia de quase 8% do PIB. Só em 2023, espera-se que a Nação termine com um “buraco” de R$ 150 bilhões, ou 2% do PIB. Nos dois últimos anos, os gastos públicos avançaram em R$ 250 bilhões. “Esses números têm uma conclusão: o resultado das contas do governo vem se deteriorando gradativamente”, reflete Sacconato. “Há um descontrole fiscal em voga, de maneira que é preciso parar e pensar nos ajustes fiscais imediatos que vão além do insuficiente arcabouço fiscal”, segue.
André Roncaglia, que leciona Economia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e na Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) segue direção oposta. Ainda que concorde que os prognósticos eram de um 2023 conturbado — muito por causa da eleição apertada de Lula meses antes —, o saldo é positivo, e os problemas que se mantiveram envolvem questões estruturais da economia nacional.
Na sua perspectiva, a questão fiscal, por exemplo, ganha outra tonalidade. “O governo aprovou uma PEC [da transição] antes da posse com o objetivo de restaurar o nível de gastos do primeiro ano de [mandato do presidente Lula], garantindo a operacionalidade do Estado brasileiro, que estava bastante fragilizado. O que se fez ali foi apenas atender às demandas sociais urgentes, como revigorar o Bolsa Família, elevar marginalmente o salário mínimo e resgatar uma série de programas importantes, como o Farmácia Popular, que estava sendo subfinanciado”, explica. “Sem contar que ainda foi possível criar um ambiente de negócios que harmonizou a política monetária com a fiscal e permitiu, assim, o início do ciclo de queda de juros. Pressionado pelo mercado financeiro a ter um horizonte de planejamento fiscal, o governo o fez por meio do marco fiscal e da Reforma Tributária. Ele até se comprometeu a fazer uma trajetória de ajuste bastante dura, zerando o déficit em 2024”, completa.
Sobre a trajetória descendente do PIB de 2021 para cá, Roncaglia observa como este ano foi marcado por um cenário economicamente positivo, em que se alinharam um mercado internacional aquecido pelos produtos brasileiros e políticas de benefícios fiscais oferecidos pelo governo. Essa conjuntura, para ele, não se repetirá. Como consequência, a curva de desaceleração dos empregos formais vai nessa mesma direção. “O carro-chefe do crescimento do PIB tem sido o agronegócio, que tem baixíssimo poder de geração de vagas — e quando cria, são com salários baixos. É um setor de efeito limitado nesse sentido”, nota.
Guilherme Dietze, economista e coordenador do Conselho de Turismo da FecomercioSP, observa que a inadimplência das famílias brasileiras foi um dos grandes dilemas de 2023. Além disso, mesmo um programa desenhado para ressecá-la, como o Desenrola Brasil, não surtiu os efeitos esperados. Quando o projeto entrou em vigor, na metade de julho deste ano, três em cada dez famílias brasileiras estavam com ao menos uma conta atrasada (29,6%), segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC). Dessas, cerca de 12% diziam, pior do que isso, não ter condições momentâneas de pagar as dívidas vencidas. Cinco meses depois, essas proporções permaneceram praticamente intactas: no fim de novembro, 29% dos lares do País estavam inadimplentes — e, desses, 12,5% não tinham como quitar as despesas atrasadas.
“Nossa expectativa era que o volume de inadimplentes caísse, o que não aconteceu. É o grande desafio nacional hoje”, explica Dietze. “O pior é que não dá para ver um cenário de queda desse indicador no curto prazo, porque as pessoas estão rolando o pagamento das dívidas para depois, enquanto os bancos estão distribuindo dinheiro nas regiões onde há mais demanda, como São Paulo”, explica. “O Desenrola funcionou para quem estava devendo pouco. Teve uma onda de pessoas que limparam o nome, mas são aquelas com baixa condição de compra”, avalia Dietze.
Roncaglia, da Unifesp, acredita que esse efeito limitado do programa tem outra causa: os juros — e não apenas a Selic, mas também os cobrados pelas instituições financeiras. “Para resolver esse problema, de fato, era preciso atacar a causa: o patamar dos juros”, diz. “Não vejo qualquer indicativo de mudança, a não ser que o PIB continue crescendo fortemente, e, com o aumento da renda, caia o comprometimento da renda das famílias com as dívidas”, ressalta. A despeito das divergências, todos concordam que o balanço de 2023 é positivo “apesar” das expectativas. “O Agronegócio ajudou muito, principalmente segurando a inflação baixa”, analisa Dietze, da FecomercioSP. Ele lembra, por exemplo, que as vendas de commoditiesagrícolas para o mercado global subiram 3,6% entre janeiro e setembro, na comparação com o mesmo periodo do ano passado. No total, as divisas passaram dos US$ 126 bilhões.
Segundo Roncaglia, o fator político teve um papel essencial nesse otimismo dentro do pessimismo. “Tinha tudo para ser um ano difícil, mas o governo conseguiu conciliar interesses muito antagônicos e agressivos entre si, o que garantiu governabilidade.” Vieira, por sua vez, lamenta as oportunidades perdidas, como uma taxa de juros mais baixa, que poderia rondar a casa dos 9% (a Selic terminará 2023 em 11,75%), e uma Reforma Tributária com menos incertezas, mas a visão geral é boa. “É fato que algumas coisas que estavam travadas foram resolvidas”, prossegue, antes de emendar: “Vamos ver como a questão fiscal se resolverá”.