As marcas do vírus

22 de setembro de 2020

Mesmo com os números de mortes e os novos casos de covid-19 em queda, as marcas do coronavírus estão em todo lugar. Além dos rostos mascarados, a doença lotou as ruas de imóveis vazios e placas de “Aluga-se”. Eles são a materialização da recessão que desafia o País, a face óbvia da crise sanitária sem data para acabar

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Há seis meses, em 20 de março, o comércio de São Paulo, a maior cidade do Brasil, baixava as portas, em função de uma das medidas para o controle do coronavírus. O mesmo se deu em praticamente todo o território nacional, que manteve abertos apenas estabelecimentos considerados essenciais. Só no Estado de São Paulo, das mais de 310 mil empresas do setor varejista, 116 mil ficaram proibidas de funcionar.

O tombo foi forte. Em abril, as vendas do varejo caíram 16,6% na comparação com março, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nos meses seguintes, um esboço de recuperação, com altas de 13,3%, 8,5% e 5,2%, respectivamente, até julho, último dado disponível. Neste ano, no entanto, a queda acumulada ainda é de 1,8%, mesmo considerando que, em 2019, o setor tinha um avanço tímido de apenas 1,2% até julho, em relação ao mesmo período de 2018.

Embora o cenário das ruas não possa ser extrapolado para essa estatística, trata-se de um indicativo do que está acontecendo. “Fomos abatidos pela pandemia. A estimativa é que 15% das empresas do varejo deixem de funcionar, mesmo que não haja fechamento formal ou falência”, afirma Fábio Pina, assessor econômico da FecomercioSP.

Números da Federação mostram que o comércio varejista brasileiro deve registrar queda entre 5% e 10% em 2020, prejuízo estimado em R$ 170,1 bilhões. A estimativa é que os setores que tiveram as operações restringidas respondam por 92% da baixa nas vendas. Além disso, no decorrer do ano, 202.744 estabelecimentos varejistas devem fechar as portas, dos quais 97% são micros, pequenas e médias empresas.

Desde março, 716 mil empresas fecharam as portas de acordo com a Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas, realizada pelo IBGE e publicada em julho. Do total de negócios fechados de forma temporária ou definitiva, quatro em cada dez afirmaram que a situação se devia à pandemia.

É comum que essas empresas tenham mais problemas de fluxo de caixa e mais dificuldade em obter crédito, o que inibe as chances de sobrevivência em um período longo sem receita. “Neste primeiro momento, há uma cesta de medidas de auxílio que sustenta um não fechamento definitivo de empresas e postos de trabalho, mas não vejo condições de todas se recuperarem. Entre o fim deste ano e o começo do próximo, quando os efeitos das medidas emergenciais se diluírem, infelizmente ainda haverá aumento do desemprego e da crise econômica”, reforça Pina.

“Crédito é o ‘calcanhar de Aquiles’. Agora, está chegando. Gradativamente, está aumentando. É suficiente? Não.” Fábio Pina, assessor econômico da FecomercioSP

Efeito disseminado pela economia

O setor de serviços – que, pelo IBGE, contempla comércio e serviços – é responsável por quase 70% do valor agregado ao Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, que encolheu 9,7% no segundo trimestre. Além de responsável pela maior parte da produção de riqueza do País, o setor é intensivo em mão de obra, empregando cerca de 60% da força de trabalho formal brasileira, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Com isso, a sua retração afeta de maneira direta o emprego e, consequentemente, a renda disponível para o consumo, retroalimentando a crise.

Pelo lado da demanda, a economia também perdeu o principal eixo de sustentação, o consumo das famílias, que caiu 12,5% entre abril e junho, mesmo considerando o efeito da concessão do auxílio emergencial a trabalhadores informais. A redução desses pagamentos nos próximos meses é um dos fatores que deve afetar o ritmo de recuperação. Outro ponto importante, que impede uma avaliação mais precisa dos efeitos da crise, são as medidas de preservação do emprego, suspendendo contratos e reduzindo jornadas e salários. Só será possível medir o desemprego causado pela pandemia quando essas medidas acabarem e contratos de trabalho forem definitivamente extintos. Só no setor varejista, a FecomercioSP estima o corte de cerca de 980 mil postos de trabalho em 2020, incluindo vagas formais e informais. No ano passado, o saldo foi positivo, com a criação de 101 mil novas vagas, considerando-se apenas as formais.

Os últimos dados do PIB não incluem o mês de julho, o terceiro seguido de recuperação das vendas no varejo. Ainda que tímida, houve uma leve melhora também no volume de serviços prestados no Brasil, que cresceu 2,6% em julho na comparação com junho, a segunda alta mensal seguida. Apesar de acumular ganhos de 7,9% em dois meses, o setor de serviços ainda não conseguiu eliminar as perdas e segue 12,5% abaixo do patamar pré-pandemia. Os serviços apresentaram uma recuperação mais lenta do que o comércio, especialmente nas atividades que dependem do atendimento presencial.

Sílvio Laban, professor do Insper e especialista em varejo, pondera que exista uma falsa sensação de que o pior já passou. Para além dos números, o mesmo fenômeno que melhorou os dados de julho pode se converter em “tiro no pé” se houver um recrudescimento da crise sanitária, com a volta das pessoas às ruas e o relaxamento das medidas de prevenção. “É uma situação inédita e, portanto, há um processo de aprendizagem. Agora, estamos aprendendo a conviver num outro contexto, uma vez que o problema de origem não foi resolvido. Há uma chance de que o momento mais agudo tenha ficado para trás, mas, evidentemente, ninguém está livre de uma segunda onda”, avalia.

“É uma situação inédita e, portanto, há um processo de aprendizagem. Agora, estamos aprendendo a conviver num outro contexto, uma vez que o problema de origem não foi resolvido.” Sílvio Laban, professor do Insper

O socorro chegou, mas atrasado

As medidas que suspenderam contratos de trabalho e adiaram o pagamento de impostos e tributos certamente foram um alívio para os empresários, sobretudo os de pequeno e médio portes, responsáveis por 30% da riqueza gerada no Brasil. Mas sem entrada no caixa – já que, para muitos setores, o comércio online e o delivery não são alternativas –, é impossível fechar as contas. É preciso dinheiro para ter fôlego.

O Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Pequenas Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) foi aprovado em abril, sancionado em maio, mas regulamentado apenas em junho, quando a economia já contabilizava três meses de crise. Na primeira fase, foram liberados R$ 18,7 bilhões, sendo R$ 15,9 bilhões do Fundo Garantidor de Operações (FGO). O dinheiro evaporou em poucos dias. Uma segunda fase do programa entrou em operação na primeira semana de setembro, com mais R$ 14 bilhões – R$ 12 bilhões do FGO, recursos estes também já esgotados. “Crédito é o ‘calcanhar de Aquiles’”, afirma Pina, da FecomercioSP. Para o economista, o dinheiro não chegou a tempo para muitas empresas. “Agora, está chegando. Gradativamente, está aumentando. É suficiente? Não.”

Mas o que esperar daqui para a frente? Sílvio Laban e Fábio Pina concordam que a recuperação efetiva da economia brasileira depende de reformas estruturais que, mais uma vez, estão sendo deixadas de lado. Portanto, mais do que as necessárias ações capazes de controlar o incêndio, é preciso saber o que fazer no rescaldo. Pina defende a urgência de se definir o tipo e o tamanho de Estado se pretendem para o Brasil, pois “só então, é possível partir para uma agenda de reformas que possam referendar e sustentar o Estado que se quer”.

O ineditismo da crise do coronavírus é inegável, mas o Brasil tem um longo histórico de crises, com as mais diversas motivações. É olhando para esse passado que Laban recorre à frase atribuída a Albert Einstein para concluir que “insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”. O momento, é fato, nunca pediu tanta sanidade.

Dimalice Nunes Paula Seco
Dimalice Nunes Paula Seco