Mesmo com os números de mortes e os novos casos de covid-19 em queda, as marcas do coronavírus estão em todo lugar. Além dos rostos mascarados, a doença lotou as ruas de imóveis vazios e placas de “Aluga-se”. Eles são a materialização da recessão que desafia o País, a face óbvia da crise sanitária sem data para acabar
Há seis meses, em 20 de março, o comércio de São Paulo, a maior cidade do Brasil, baixava as portas, em função de uma das medidas para o controle do coronavírus. O mesmo se deu em praticamente todo o território nacional, que manteve abertos apenas estabelecimentos considerados essenciais. Só no Estado de São Paulo, das mais de 310 mil empresas do setor varejista, 116 mil ficaram proibidas de funcionar.
O tombo foi forte. Em abril, as vendas do varejo caíram 16,6% na comparação com março, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nos meses seguintes, um esboço de recuperação, com altas de 13,3%, 8,5% e 5,2%, respectivamente, até julho, último dado disponível. Neste ano, no entanto, a queda acumulada ainda é de 1,8%, mesmo considerando que, em 2019, o setor tinha um avanço tímido de apenas 1,2% até julho, em relação ao mesmo período de 2018.
Embora o cenário das ruas não possa ser extrapolado para essa estatística, trata-se de um indicativo do que está acontecendo. “Fomos abatidos pela pandemia. A estimativa é que 15% das empresas do varejo deixem de funcionar, mesmo que não haja fechamento formal ou falência”, afirma Fábio Pina, assessor econômico da FecomercioSP.
Números da Federação mostram que o comércio varejista brasileiro deve registrar queda entre 5% e 10% em 2020, prejuízo estimado em R$ 170,1 bilhões. A estimativa é que os setores que tiveram as operações restringidas respondam por 92% da baixa nas vendas. Além disso, no decorrer do ano, 202.744 estabelecimentos varejistas devem fechar as portas, dos quais 97% são micros, pequenas e médias empresas.
Desde março, 716 mil empresas fecharam as portas de acordo com a Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas, realizada pelo IBGE e publicada em julho. Do total de negócios fechados de forma temporária ou definitiva, quatro em cada dez afirmaram que a situação se devia à pandemia.
É comum que essas empresas tenham mais problemas de fluxo de caixa e mais dificuldade em obter crédito, o que inibe as chances de sobrevivência em um período longo sem receita. “Neste primeiro momento, há uma cesta de medidas de auxílio que sustenta um não fechamento definitivo de empresas e postos de trabalho, mas não vejo condições de todas se recuperarem. Entre o fim deste ano e o começo do próximo, quando os efeitos das medidas emergenciais se diluírem, infelizmente ainda haverá aumento do desemprego e da crise econômica”, reforça Pina.
O setor de serviços – que, pelo IBGE, contempla comércio e serviços – é responsável por quase 70% do valor agregado ao Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, que encolheu 9,7% no segundo trimestre. Além de responsável pela maior parte da produção de riqueza do País, o setor é intensivo em mão de obra, empregando cerca de 60% da força de trabalho formal brasileira, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Com isso, a sua retração afeta de maneira direta o emprego e, consequentemente, a renda disponível para o consumo, retroalimentando a crise.
Pelo lado da demanda, a economia também perdeu o principal eixo de sustentação, o consumo das famílias, que caiu 12,5% entre abril e junho, mesmo considerando o efeito da concessão do auxílio emergencial a trabalhadores informais. A redução desses pagamentos nos próximos meses é um dos fatores que deve afetar o ritmo de recuperação. Outro ponto importante, que impede uma avaliação mais precisa dos efeitos da crise, são as medidas de preservação do emprego, suspendendo contratos e reduzindo jornadas e salários. Só será possível medir o desemprego causado pela pandemia quando essas medidas acabarem e contratos de trabalho forem definitivamente extintos. Só no setor varejista, a FecomercioSP estima o corte de cerca de 980 mil postos de trabalho em 2020, incluindo vagas formais e informais. No ano passado, o saldo foi positivo, com a criação de 101 mil novas vagas, considerando-se apenas as formais.
Os últimos dados do PIB não incluem o mês de julho, o terceiro seguido de recuperação das vendas no varejo. Ainda que tímida, houve uma leve melhora também no volume de serviços prestados no Brasil, que cresceu 2,6% em julho na comparação com junho, a segunda alta mensal seguida. Apesar de acumular ganhos de 7,9% em dois meses, o setor de serviços ainda não conseguiu eliminar as perdas e segue 12,5% abaixo do patamar pré-pandemia. Os serviços apresentaram uma recuperação mais lenta do que o comércio, especialmente nas atividades que dependem do atendimento presencial.
Sílvio Laban, professor do Insper e especialista em varejo, pondera que exista uma falsa sensação de que o pior já passou. Para além dos números, o mesmo fenômeno que melhorou os dados de julho pode se converter em “tiro no pé” se houver um recrudescimento da crise sanitária, com a volta das pessoas às ruas e o relaxamento das medidas de prevenção. “É uma situação inédita e, portanto, há um processo de aprendizagem. Agora, estamos aprendendo a conviver num outro contexto, uma vez que o problema de origem não foi resolvido. Há uma chance de que o momento mais agudo tenha ficado para trás, mas, evidentemente, ninguém está livre de uma segunda onda”, avalia.
As medidas que suspenderam contratos de trabalho e adiaram o pagamento de impostos e tributos certamente foram um alívio para os empresários, sobretudo os de pequeno e médio portes, responsáveis por 30% da riqueza gerada no Brasil. Mas sem entrada no caixa – já que, para muitos setores, o comércio online e o delivery não são alternativas –, é impossível fechar as contas. É preciso dinheiro para ter fôlego.
O Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Pequenas Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) foi aprovado em abril, sancionado em maio, mas regulamentado apenas em junho, quando a economia já contabilizava três meses de crise. Na primeira fase, foram liberados R$ 18,7 bilhões, sendo R$ 15,9 bilhões do Fundo Garantidor de Operações (FGO). O dinheiro evaporou em poucos dias. Uma segunda fase do programa entrou em operação na primeira semana de setembro, com mais R$ 14 bilhões – R$ 12 bilhões do FGO, recursos estes também já esgotados. “Crédito é o ‘calcanhar de Aquiles’”, afirma Pina, da FecomercioSP. Para o economista, o dinheiro não chegou a tempo para muitas empresas. “Agora, está chegando. Gradativamente, está aumentando. É suficiente? Não.”
Mas o que esperar daqui para a frente? Sílvio Laban e Fábio Pina concordam que a recuperação efetiva da economia brasileira depende de reformas estruturais que, mais uma vez, estão sendo deixadas de lado. Portanto, mais do que as necessárias ações capazes de controlar o incêndio, é preciso saber o que fazer no rescaldo. Pina defende a urgência de se definir o tipo e o tamanho de Estado se pretendem para o Brasil, pois “só então, é possível partir para uma agenda de reformas que possam referendar e sustentar o Estado que se quer”.
O ineditismo da crise do coronavírus é inegável, mas o Brasil tem um longo histórico de crises, com as mais diversas motivações. É olhando para esse passado que Laban recorre à frase atribuída a Albert Einstein para concluir que “insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”. O momento, é fato, nunca pediu tanta sanidade.