Círculo vicioso

17 de maio de 2023

Instituições financeiras aumentaram o grau de exigência na concessão de crédito e spreads, em movimento contrário ao observado durante a pandemia, quando empresas encontraram facilidade para rolar dívidas. Aliado a esse cenário, o elevado nível de endividamento do consumidor e a alta inadimplência contribuem para o crédito mais restrito.

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Depois de acumular crescimento de 5% em 2021, o Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todas as riquezas do País, desacelerou e encerrou o ano passado com alta de 2,9%. Para este ano, a perspectiva é de expansão ainda menor (1,02%), conforme o último boletim Focus, divulgado na última segunda-feira (15) pelo Banco Central (Bacen).

A desaceleração econômica é um fenômeno visto mundo afora no período pós-pandemia, a qual se intensificou com a guerra entre Rússia e Ucrânia. Com a inflação em patamares elevados, bancos centrais tentam contrair o acesso ao crédito para controlar a demanda e, assim, reduzir a alta nos preços. O remédio usado para tal é o aumento da taxa básica de juros.

Por aqui, a Selic começou a subir em março de 2021 e seguiu em escalada, saindo de 2% ao ano (a.a.) até alcançar os atuais 13,75%, taxa que vem sendo mantida desde agosto do ano passado. Referência para o custo das linhas de crédito, a tendência é que empréstimos e financiamentos fiquem mais caros com a Selic em alta, impactando diretamente a retomada da economia brasileira, que passa justamente pelo estímulo ao crédito.

“Estamos enfrentando uma situação de crédito muito difícil para as empresas e para as pessoas físicas. Além de caro, o crédito está escasso”, avalia o professor Antonio Lanzana, copresidente do Conselho de Economia Empresarial e Política (CEEP) da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).

Lanzana comenta que as instituições financeiras aumentaram significativamente o grau de exigência na concessão de crédito, os spreads — a diferença entre os juros cobrados pelos bancos aos tomadores de crédito — e a remuneração paga aos investidores que emprestam dinheiro a essas instituições. “Durante a pandemia, as empresas encontraram facilidade para rolar suas dívidas, mas, agora, estão enfrentando outro cenário, com dificuldades para tomar empréstimos”, complementa Lanzana.

É importante que, neste momento, os instituições analisem de forma mais criteriosa até para evitar um endividamento que não seja saudável para o cliente, na visão de Luiz Fernando Castelli, economista da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). “Às vezes, o cliente quer tomar mais crédito, mas a instituição avalia que ele já tem um valor alto de empréstimos”, explica.

O elevado nível de endividamento do consumidor e a alta inadimplência contribuem para que o crédito fique ainda mais restrito. “As famílias estão em alto nível de endividamento. Enquanto não reduzir, dificilmente a demanda de crédito vai voltar. Para isso, é necessária uma recuperação do mercado de trabalho e da renda”, considera o economista Michael Burt, especialista na área de Crédito da LCA Consultores, ao comentar que o Comitê de Política Monetária (Copom) sinaliza um início da flexibilização da Selic se aproximando. “Deve baixar em agosto e fechar o ano em 12%, porcentual ainda alto e restritivo. Só a partir de 2025 que deve entrar em um caminho mais flexível”, considera o economista.

Estímulos

Algumas ações adotadas pelo governo federal visam a contribuir para a retomada do crédito, dentre elas, o anúncio em abril, pelo Ministério da Fazenda, de um conjunto de 13 medidas para estimular o mercado de crédito, com redução de custos e taxa de juros, além de investimentos em infraestrutura. Além disso, prevê a mudança na fatia mínima da renda do cidadão que não pode ser comprometida com dívidas (debitada no consignado ou bloqueada pelo banco, por exemplo). Atualmente, esse valor é de R$ 303, mas o governo pretende editar decreto para estabelecer que o mínimo existencial suba para R$ 600.

“Recentemente, a Caixa Econômica Federal voltou a operar o Peac [Programa Emergencial de Acesso a Crédito] e divulgou mudanças no Pronampe [Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte], programas de crédito que podem ajudar a sustentar no curto prazo. De forma estrutural, a inflação tem de baixar, a volatilidade, diminuir e ter um processo de rebaixamento da Selic”, considera Burt. Para Lanzana, o quadro é preocupante, porém diz acreditar que não devemos repetir a crise de 2015 e 2016, quando o País experimentou dois anos seguidos de recessão que abalaram as empresas. Hoje, não estamos em situação tão grave quanto naqueles anos, e a expectativa é de alguma melhora, mas sem motivo para grandes expectativas, ressalta o economista.

O que poderia aliviar esse quadro, na avaliação de Lanzana, é a redução da taxa de juros, que vai cair, mas não imediatamente. “O Bacen vai reduzir taxa de juros, acreditamos que no início do segundo semestre. Hoje o IPCA [inflação oficial do País] vem reduzindo, mas o núcleo de inflação — que mostra o comportamento efetivo da inflação — está bem acima dos 4,18%, perto de 7,5%. Mesmo com inflação subindo no segundo semestre, acho que a Selic vai cair gradualmente. Com isso, o mercado do setor tende a melhorar, mas não é uma excepcionalidade. O acesso ao crédito vai ficar menos complicado, mas ainda será complicado”, pondera.

Aperto nas contas

O aumento da inadimplência põe em risco o crédito tanto corporativo quanto varejista. Mais inadimplência reduz o crédito, e juros em alta deixa o custo dos empréstimos mais caros. Diante disso, fica mais difícil fazer a roda da economia girar. O mais recente levantamento da Serasa Experian, com dados de março, indica que a inadimplência no Brasil segue crescendo, mas com desaceleração. Em março, o indicador contabilizou aumento de 180 mil pessoas, contra 430 mil de fevereiro. No total, o índice de inadimplência aponta 70,71 milhões de brasileiros com o nome restrito.

Segundo os especialistas, a inadimplência da pessoa física já atingiu o pico, e a tendência é de estabilização. “A preocupação maior é em relação ao comportamento futuro do mercado de trabalho, que não parece ser muito promissor em razão da expectativa de crescimento fraco do nível de atividade em 2023”, comenta Lanzana. Essa melhora já pode ser sentida na capital paulista: em um ano, 62,4 mil famílias na capital paulista deixaram a lista de lares com com contas em atraso, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), elaborada mensalmente pela FecomercioSP. O índice é 1,7 ponto porcentual (p.p.) menor que o registrado no mesmo período do ano passado (24,6%). Na comparação mensal, o índice constatado foi tecnicamente igual: 23% em março.

Do ponto de vista das empresas, Lanzana lembra que os pedidos de recuperação extrajudicial (acordos fora do ambiente judicial) cresceram 900% no primeiro trimestre deste ano, na comparação com igual período do ano passado, conforme dados da Serasa. Estudo do Centro do Mercado de Capitais (Cemec) — entidade ligada à Fundação Insituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) — para companhias abertas mostra que enquanto o endividamento total das empresas era 48,9% maior em 2022, na comparação com 2019, a situação era ainda mais crítica para o comércio varejista, frente a uma dívida bruta com alta de 105,6%. “A situação impacta mais fortemente o comércio varejista porque o setor se endividou mais, uma vez que a pandemia exigiu investimentos maiores: fechamento de lojas físicas, mudança para o e-commerce, logística, segurança, atualização tecnológica etc.”, comenta Lanzana.

O indicador de crédito da Serasa, por sua vez, revelou, em março, a primeira alta de 2023: 1,1% em comparação ao mesmo mês do ano passado. Foram os grandes negócios que mais buscaram pelo recurso financeiro e impulsionaram o índice, com aumento de 22,9%. As companhias de médio porte cresceram 6%, enquanto os micro e pequenos subiram apenas 0,9%. 

“Estamos enfrentando uma situação de crédito muito difícil para as empresas e para as pessoas. Além de caro, o crédito está escasso.” Antonio Lanzana, copresidente do Conselho de Economia Empresarial e Política (CEEP) da FecomercioSP

Problema mundial

A despeito de a inflação e os juros altos serem, em geral, associados a países emergentes, o que vemos atualmente é um fenômeno mundial, com um processo de elevação de juros na tentativa de segurar a alta dos preços. “O que muda é o nível das taxas. As do Brasil, por exemplo, são maiores do que de países avançados”, diz Castelli, da Febraban.

Por aqui, o Bacen espera que a inflação volte para a meta a partir do ano que vem. No entanto, no mundo, já se fala que isso deve ocorrer apenas em 2025.  “A tendência é que a desinflação seja gradual, e o crescimento, baixo. O cenário mundial não é positivo. O setor financeiro nos Estados Unidos também está complicado, bancos entraram em falência”, afirma Burt, também da Febraban.

Para os especialistas, é fundamental a aprovação do arcabouço fiscal, em negociação pelo governo federal com o Congresso Nacional. A melhora no ambiente econômico trará mais tranquilidade para o Bacen cortar juros. Eles consideram que o mercado de crédito nacional ainda tem muito a evoluir — para isso, é importante, no longo prazo, melhorar o acesso às informações, discutir a tributação do segmento e reduzir custos das operações financeiras a fim de atrair mais investimentos e contribuir para a retomada econômica.

Gilmara Santos Débora Faria
Gilmara Santos Débora Faria