A maior crise econômica a atingir o Brasil em duas décadas acelera medidas para redesenhar o tamanho do Estado e o seu custo à sociedade. As raízes da questão e as propostas para retomar a economia são analisadas em reportagem de capa da PB (#460), disponível nas bancas e na plataformas digitais, em outubro.
Uma crise – que não tem como origem um desequilíbrio no mercado financeiro, tampouco na gestão desastrosa da economia – vai levar o Brasil ao pior crescimento em, ao menos, 20 anos e exigir que o País acelere reformas estruturantes para se recuperar. Isso porque fomos abatidos por uma forte turbulência que levou economistas a procurar soluções fora dos tradicionais manuais usados em situações de escassez de demanda e paralisação da atividade, em um curto espaço de tempo.
Pouco mais de seis meses depois de dizer que com R$ 5 bilhões o País conseguiria aniquilar o coronavírus, o ministro Paulo Guedes (Economia) se vê com uma dívida que deve saltar de 75% para quase 100% do Produto Interno Bruto (PIB). O endividamento que deveria encerrar o ano em R$ 124 bilhões, meta antes da pandemia, já chegou a R$ 700 bilhões. “É uma crise que levou às interrupções abruptas de produção, circulação e consumo. Não adianta gerar demanda se ninguém sai de casa para consumir. Não adianta gerar emprego se as pessoas não saem para trabalhar”, resume André Nahoum, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Reescrever o manual de combate a crises em um governo dito liberal significou adotar políticas de facilitação do crédito para empresas, bem como estabelecer um auxílio emergencial de R$ 600, para tentar conter a sangria na renda de trabalhadores informais. As medidas amorteceram o baque sobre o PIB. Em estimativas conservadoras do mercado, coletadas pelo Banco Central (BC), a crise vai ceifar 5,3% do PIB em 2020 – só no segundo trimestre, o tombo foi de 9,7% em relação aos três meses anteriores.
Antes, o Brasil já não vinha bem, com a economia patinando após uma das piores recessões em 2015-2016, quando quase 7% do PIB foram enxugados como reflexos de medidas equivocadas adotadas no governo Dilma Rousseff. Até então, vínhamos construindo, desde os anos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), um arcabouço financeiro sólido que permitiu absorver choques externos relevantes, como a crise internacional provocada pelas hipotecas subprime nos Estados Unidos.
A grande dificuldade do Brasil passou a ser como colocar as contas do governo no azul novamente. Desde 2014, o País não consegue ter superávit primário. O pior resultado negativo se deu em 2016, quando os gastos superaram as receitas em R$ 161,3 bilhões. A explicação está no engessamento do orçamento, que tem 94% dos recursos tomados por despesas obrigatórias. É nesse contexto que Jair Bolsonaro foi eleito em 2018, prometendo implementar um programa econômico liberal.
Uma das primeiras medidas adotadas foi enviar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propunha mudanças na Previdência Social, com o objetivo de reduzir o peso de aposentadorias e pensões no orçamento [que, atualmente, respondem por 52%] no longo prazo. Após embates de Paulo Guedes com o Congresso, o texto foi aprovado e promulgado em novembro de 2019 – episódio em que Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara, se notabilizou pela articulação política.
Com outras reformas a serem enviadas, em especial a Administrativa e a Tributária, além da promessa de privatizações, a agenda reformista de Bolsonaro foi atropelada pela pandemia. “A gente dava sinais de que ia sair da crise. O PIB cresceu 1% no ano passado, mas se considerarmos o fato de que o governo cresceu menos, a parte privada já vinha crescendo a uma taxa maior”, diz Fábio Pina, assessor econômico da FecomercioSP. “Estava tirando o governo da economia e indo para uma lógica mais de mercado.”
O efeito cumulativo com a crise do biênio 2015-2016 agrava a situação. Nas contas do economista José Luis Oreiro, professor-adjunto da Universidade de Brasília (UnB), o PIB brasileiro deve encerrar o ano em torno de 10% abaixo do patamar de 2014. “Saímos da maior crise da economia brasileira desde os anos 1980 com um ritmo de crescimento 57% abaixo da nossa média de longo prazo do período de 1980 a 2014”, diz. “Nós não nos recuperamos da crise de 2014 a 2016. Ainda estávamos devendo PIB.”
A gravidade da atual crise é reforçada pelo fato de a turbulência ocorrer em um cenário de renda reprimida e nível de desemprego elevado, o que pode elevar a informalidade no País – hoje, 38 milhões de brasileiros estão fora do mercado formal. No trimestre encerrado em junho, o desemprego estava em 13,3%. Esse cenário terá de ser levado em consideração pelo governo, ao dosar a retirada de uma das medidas que ajudaram a amenizar a queda do PIB: a concessão de um auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores informais – prorrogada até dezembro, mas no valor de R$ 300. “O emprego não vai surgir do nada. As pessoas que estão dependendo do auxílio não vão ter emprego em dois ou três meses”, avalia Nahoum, da USP. “O auxílio reduziu a pobreza e, a médio prazo, pode gerar emprego.”
A crise vai aumentar a sobrecarga dos serviços públicos, à medida que famílias de classe média perdem renda, precisam tirar filhos de escolas particulares e também começam a utilizar a saúde pública, por exemplo. O desemprego também levará trabalhadores a recorrer à saúde pública, após ficarem sem seguro médico privado. Para Antônio Lanzana, da FecomercioSP, “o Brasil não gasta pouco na área de saúde, gasta mal”. “O Sistema Único de Saúde (SUS) esteve relativamente bem na pandemia, mas o fundamental está na eficiência do Estado brasileiro. É [preciso] gerir melhor.”
“Apesar dos esforços, a equipe econômica não entregou muita coisa. Eu acho que o caminho para reorganizar o funcionamento da economia passe pelas reformas Administrativa e Tributária”, afirma Felippe Serigati, professor da Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas (FGV). Segundo ele, “vamos tentar passar uma reforma. Não está clara qual a Reforma Tributária: a da Câmara, a do Senado ou a do governo? Os esforços deveriam estar concentrados em uma única agenda”.
Além de Serigati, a reportagem completa da PB traz alternativas e avaliações assinadas pelos especialistas Laura Carvalho (professora da Faculdade de Economia e Administração da USP), Marcelo Néri (diretor do FGV Social), Eduardo Giannetti (economista e escritor), Elena Landau (economista) e Zeina Latif (consultora econômica).