Foi na metade de 2018 que a empresária mineira Fernanda Hatsuka decidiu mudar radicalmente de carreira. Ela, que havia acabado de chegar de uma especialização em negócios de curta duração em uma universidade norte-americana (e impactada pelas aulas), decidiu largar o cobiçado cargo de executiva de uma startup de tecnologia sediada em Belo Horizonte para abrir o próprio negócio.
A ideia era conectar artistas a clientes interessados em adquirir obras originais por meio de um aplicativo semelhante a uma rede social. “Deu certo por quase dois anos”, relembra ela, em meio a um sorriso triste. Em maio de 2020, no desespero inicial da pandemia de covid-19, a empresa faliu.
Mesmo assim, Fernanda decidiu seguir empreendendo. Passou dois meses estruturando um sonho antigo de digitalizar mulheres de classes baixas por meio de cursos a distância e, ao lado de um sócio, colocou o negócio de pé no fim daquele ano, enquanto o País estava imerso no isolamento social. O empreendimento durou até o começo de 2023, embora já estivesse escanteado há pelo menos dois anos — período em que, para pagar as contas, ela voltou a trabalhar para uma consultoria.
Há alguns meses, Fernanda resolveu abandonar outra vez o cargo assalariado para materializar um terceiro projeto abrir uma startup para vender cuidados com saúde mental a empresas preocupadas com os próprios colaboradores. “Aos trancos e barrancos, está dando certo”, conta ela, empolgada. Hoje, a empresa tem quatro colaboradores, todos em home office. Para este ano, o plano é inaugurar um espaço físico em Belo Horizonte e contratar mais duas pessoas. “Sinto que as coisas estão um pouquinho mais fáceis agora para quem quer empreender”, reflete a empresária. “Quebrei duas empresas no passado muito por causa da burocracia que existe para tocar um negócio no Brasil. O Estado nem sempre é o seu sócio — em muitos momentos, é como um rival”, desabafa.
Essa percepção de que as burocracias sobre negócios no País afrouxaram não é trivial: desde que a Lei da Liberdade Econômica (LLE) entrou em vigor, na metade de 2019, entraves comuns a processos cotidianos das empresas brasileiras — como solicitar (e receber) um alvará de funcionamento ou contratar um funcionário — foram relativamente otimizados onde ela foi adotada. Demanda histórica do empresariado, a LLE, que completará meia década em 2024, tem como objetivo principal desburocratizar o ambiente de negócios e promover a livre-iniciativa. Começou como uma Medida Provisória (MP), decretada por Jair Bolsonaro em abril de 2019. Quatro meses depois, foi aprovada no Congresso já como Declaração de Direitos da Liberdade Econômica. Dentre os seus dispositivos, estão as reduções da burocracia e da interferência governamental, o fortalecimento da segurança jurídica e o estímulo ao empreendedorismo.
No começo de novembro, o Centro Mackenzie de Liberdade Econômica (Mackliber), um dos principais laboratórios de pesquisas sobre o tema, fundado em 2016, organizou um encontro de dois dias com especialistas para se debruçar sobre a atualidade da LLE. O evento aconteceu na universidade de mesmo nome, em São Paulo. O coordenador do Mackliber, Vladimir Maciel, que leciona no Mackenzie há mais de duas décadas, é um dos entusiastas mais ponderados da lei. “Por um lado, é um fato que a lei deu mais liberdade para empreender. Não é à toa que o número de negócios abertos de lá para cá subiu bastante”, aponta. “Por outro, é um escopo que depende muito da adoção por Estados e municípios — principalmente por ser de cunho federal. Ela abre janelas, mas não muda a realidade imediatamente”, continua ele, que também é sócio da consultoria Urbana.
A ponderação de Maciel, no entanto, é um sentimento compartilhado entre empresários, executivos, economistas e demais atores que transitam entre grandes empresas nacionais — bem como pelo mercado financeiro —, em decorrência da realidade dos pequenos e médios negócios e pela própria burocracia estatal. Interlocutores ouvidos pela Problemas Brasileiros, em encontros e feiras empresariais, reuniões de conselhos administrativos, programas de fomento ao empreendedorismo e mesmo nos corredores de Brasília nos últimos meses, reconhecem avanços promovidos pela lei na mesma medida em que conseguem elencar com rapidez os problemas. O argumento comum de todos eles é que o Brasil seria pior sem a LLE.
Muitas fontes têm o mesmo discurso: é curioso o Brasil ter necessitado da criação de uma lei para gerar mais liberdade (uma contradição, decerto) — e nesse sentido, a LLE chega a ser inócua. Ao mesmo tempo, dizem que a lei melhorou a vida de quem administra uma empresa no País, como a sobreposição de acordos privados a definições judiciais, o dinamismo de liberações outrora obrigatórias e a flexibilização de algumas regras trabalhistas ou econômicas.
Segundo Fabio Pina, assessor econômico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), o objetivo mais importante era, antes de tudo, transformar o status simbólico do empreendedor do Brasil, e isso foi atingido. “Mudou o conceito comum do empresário, que, antes, era visto com desconfiança, como o sujeito que não quer pagar imposto, que diminui o salário até o máximo ou que está sempre inclinado à informalidade. Hoje, há a presunção da boa-fé na letra da lei, mas também no dia a dia do mercado”, observa. Essa mudança simbólica também é um dos trunfos mais significativos na visão de Maciel, do Mackliber. “Mesmo no sentido burocrático, qualquer empreendedor é idôneo até que se prove o contrário. Com isso, o Estado se tornou mais um grande prestador de serviços do que um sancionador”, analisa Pina, lembrando que uma das regras estabelecidas foi a aprovação imediata de solicitações feitas à administração pública sem resposta dentro do prazo.
No entanto, há também efeitos palpáveis — e alçados sempre que possível. O aumento de empresas abertas é um indicador comum de mensuração do sucesso da lei, por exemplo. Em março passado, um relatório publicado pelo Instituto Millenium, um think tank de orientação liberal com duas décadas de existência, concluiu que aumentou em 89% a média anual de novos registros em cidades que adotaram algum ponto da LLE.
No mesmo relatório, o Instituto Millenium ainda destacou que a chance de um negócio seguir ativo ao longo do tempo é muito maior nos municípios que adotaram ao menos uma parte da legislação de 2019 do que naqueles onde esta não fora implementada. Na verdade, subiu em 65% a média anual de empreendimentos em funcionamento nos lugares onde a regra passou a fazer parte, de alguma forma, da vida do empresariado local.
O mesmo Millenium publicou um estudo, em outubro de 2022, com base nas tabelas do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), indicando uma expansão de 40% nas contratações dentro da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) após a legislação entrar em vigor. Ainda que a pesquisa tenha encontrado um avanço na taxa de demissões (25%), foi bem inferior ao ritmo de vagas formais abertas e preenchidas no mesmo período. “Isso é resultado da segurança jurídica de quem está empreendendo, porque quando há uma formalização mais ampla à vista do empresário, existem mais condições de investimento no próprio negócio. Isso se expressa no mercado de trabalho”, reflete Maciel.
Números oficiais do governo, por sua vez indicam que o surgimento de novos negócios não tem capilaridade nacional.
De acordo com os dados de 2022, foram abertas 3,8 milhões de empresas no Brasil, o que significou uma queda de 4,8% em relação ao ano anterior. Além disso, aproximadamente 1,7 milhão de empreendimentos fecharam as portas no mesmo período, um avanço de quase 20% na taxa em comparação a 2021, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Vale mencionar que a maior parte dos empreendimentos era formada por Microempreendedores Individuais (MEIs) que, em muitos casos, são apenas pessoas físicas que registram um CNPJ para oferecer serviços desregulados no mercado.
Ainda segundo os mesmos dados, o ano de 2022 terminou, com pouco mais de 20,1 milhões de negócios ativos no país. No final de 2019, esse número era 18,4 milhões.
Na visão de Pina, da FecomercioSP, é importante olhar para números como esses a partir de uma realidade ainda desequilibrada. “É um fato que as cidades que aplicaram alguma regra de liberdade econômica tiveram efeitos inequívocos, mas a questão é que quem não o fez ainda, enfrenta muitos entraves. O fato de ser uma lei principiológica de caráter federal dificulta a amplitude dos impactos, e as empresas nacionais querem vê-los imediatamente.”
Esse resultado imediato, ainda assim, é perceptível no ranking produzido pela Fundação Heritage, o principal que mede a liberdade econômica globalmente, sediada em Washington, nos Estados Unidos. Na lista, o Brasil ocupa a 127ª posição entre as nações consideradas “significativamente fechadas”, como Niger e Kiribati, na África; Bangladesh, na Ásia; e El Salvador, na América Central. Em 2017, o país estava na 140ª colocação. O ranking leva em conta critérios como liberdade de comércio e de investimentos, gastos do governo, sistema monetário e direitos de propriedade.