Em 2000, o filme brasileiro Cronicamente inviável fazia sucesso no circuito alternativo de cinema ao apontar a dificuldade de sobrevivência na sociedade brasileira, independentemente das condições sociais dos protagonistas. Hoje, muitas questões retratadas ali ainda se mantêm, mas, no distante início do século 21, o Brasil já tinha superado um de seus maiores monstros econômicos: a inflação. Hoje, entramos na terceira década de estabilização de preços, numa perseguição rígida de metas que poucas vezes deixaram de ser cumpridas. É como se sirenes de alerta soassem ao menor repique de preços.
Na Argentina, a ferida desse aumento contínuo dos preços tem cada vez menos chances de cicatrizar no curto prazo. Em janeiro, no mesmo dia que o Brasil voltou a cumprir a meta após dois anos de constantes subidas — ao fechar 2023 com 4,6% —, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina (Indec), equivalente ao IBGE, anunciava que, só em dezembro de 2023, a inflação foi de 25,5%. No ano, foi de 211,4%, a maior em 34 anos. No fim do mês passado, quando o Líbano anunciou inflação de 192%, tornou-se oficial: em 2023, a Argentina apresentou a maior inflação do mundo, desbancando também a Venezuela (190%), que, até 2022, tinha a maior inflação da América Latina.
“A Argentina sofre com uma situação crônica elevada e persistente ao longo do tempo. Há mais de 15 anos que a inflação anual tem dois dígitos, e a tendência é crescente”, resume o economista Santiago Manoukian, chefe de Pesquisas da Ecolatina, uma das principais consultorias econômicas da América Latina. Cerca de um mês antes do anúncio da inflação de 2023, em 10 de dezembro, o libertário Javier Milei assumia a presidência do país com a promessa de, mediante um pacote radical de desregulação da economia e dolarização, estancar a forte desvalorização do peso, equilibrar as contas públicas e conter a inflação. Ainda em dezembro, o banco J.P. Morgan alertava para a rápida aceleração da inflação, que deve somar 60% entre dezembro e janeiro. A mesma instituição, num relatório mais recente, afirma que a dolarização — principal bandeira de Milei — vai falhar.
No documento De olho nas perspectivas do mercado em 2024, o presidente do grupo de estratégia de investimento e mercado do J.P. Morgan, Michael Cembalest, afirma que “a convertibilidade só é viável em um país com a combinação de altos níveis de produtividade e dinamismo para que a economia absorva a renda interna e os choques externos, além de financiamento internacional”. Segundo ele, a “Argentina não tem nenhum desses atributos. A dolarização daria lugar à desdolarização em pouco tempo”, conclui.
E as projeções não são animadoras. Ainda que o Fundo Monetário Internacional (FMI) preveja desaceleração da inflação argentina em 2024, o dado ainda deve ser de 150%. Preços nas alturas achatam o poder de compra, pesam sobre a produção e deprimem a economia. Em novembro passado, a projeção do FMI para o Produto Interno Bruto (PIB) argentino era de expansão de 2,8% neste ano. Em janeiro, o sinal trocou: são os mesmos 2,8%, mas de retração. Tão crônica quanto a inflação é a dívida da Argentina. No dia em que completava um mês na Casa Rosada, Milei assinou com o FMI a entrada de mais US$ 4,7 bilhões para os cofres argentinos, que se somam aos US$ 44 bilhões já emprestados. O país, o maior credor do FMI no mundo, em troca, garantiu o compromisso de um superávit fiscal de 2% do PIB e o acúmulo de reservas internacionais líquidas de US$ 10 bilhões. Hoje, o nosso vizinho tem cerca de US$ 27 bilhões em reservas, mas deve quase US$ 300 bilhões só para o exterior. E esse é o ponto nevrálgico para a economia argentina entrar nos eixos: mais de 90% da dívida pública são indexados ao dólar ou à inflação, o que impede o governo de liquidar o passivo diante da desvalorização do peso e da alta generalizada de preços.
De acordo com Manoukian, a inflação alta e persistente está ligada, fundamentalmente, à inconsistência das políticas macroeconômicas ao longo do tempo, tanto cambiais como monetárias e fiscais, além de um déficit fiscal igualmente crônico, financiado com a emissão de moeda. “É preciso gerar superávit fiscal, garantir a independência do Banco Central e encerrar a emissão monetária”, afirma o economista. É sabido que emitir dinheiro agrava a inflação, mas é isso que sistematicamente tem sido feito para a Argentina honrar os compromissos financeiros — e nada mudou, por ora. Apesar de não haver mais emissão de pesos para cobrir diretamente o déficit fiscal desde antes de Milei assumir, no primeiro mês de mandato foram impressos 11,6 bilhões de pesos para pagar passivos e comprar dólares para as reservas. “Baixa reserva cambial e pouca liquidez nos bancos são dois dos principais males da economia argentina e mantêm o país sob ameaça de calote”, afirma Fernando Nogueira da Costa, professor livre-docente no Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em teoria monetária e financeira.
O professor explica, ainda, que as reservas em dólar têm importância crucial para uma economia como a da Argentina, pois representam a ferramenta para evitar a desvalorização da moeda e o indicador mais confiável de solvência, já que indicam se o Estado pode ou não administrar os próprios pagamentos.
Ao longo de 2023, a inflação corroeu o peso, e a desvalorização de 77,9% da moeda argentina só ficou atrás da queda de 88,9% da libra libanesa, segundo dados do Statista. Embora oficialmente a economia argentina não seja dolarizada, conviver com uma moeda fraca faz com que o pensamento seja em dólar. Salários, aluguéis, imóveis, carros, tudo é “dolarizado”, pelo menos no cálculo mental de quem compra e vende. “A depreciação da moeda nacional afeta o bolso dos cidadãos, uma vez que recebem salários em pesos, mas compram bens de maior valor com unidade de conta em dólar. Daí, usa-se mais moeda nacional como meio de pagamento e surge a hiperinflação”, explica Nogueira da Costa.
São os fatores simbólicos ligados à cronicidade da inflação. O economista Joaquín Waldman é um estudioso do fenômeno da inflação, pesquisador do Centro de Estudos de Estado e Sociedade (Cedes) da Argentina, afirma que quando uma sociedade convive muitos anos com a inflação, adapta-se a ela, gerando mecanismos que a perpetuam. “Essa conformidade é difícil de ser quebrada”, afirma. Segundo ele, o caminho para conter a inflação passa justamente por um plano que garanta estabilidade cambial consistente. “Não necessariamente um câmbio fixo, mas um esquema em que se possa confiar que a moeda não sofrerá depreciações abruptas”, afirma. Novamente, isso requer equilíbrio fiscal e externo.
Nogueira da Costa conta que, na segunda metade da década de 1970, com a liberalização do mercado cambial e a política de abertura financeira, o dólar se tornou uma ferramenta de operações diárias na Argentina. “A especulação com o dólar se tornou o principal método de poupança. O peso já não servia mais como reserva de valor.” O professor acrescenta que “não se pode falar da obsessão dos argentinos pelo dólar sem falar de sua relação conflituosa com a moeda. A desvalorização do peso é um dos traumas permanentes”.
No Brasil, o choque do petróleo foi o estopim para a inflação acima dos 200% ao ano (a.a.), na década de 1980. No entanto, a correção monetária evitou a fuga de capital para o dólar porque o Brasil oferecia título de dívida pública com “risco soberano”, isto é, do Tesouro Nacional, sem perigo de calote. Entre as décadas de 1980 e 1990, foram quatro planos de controle de inflação até que o País acumulasse reservas cambiais suficientes para estabilizar o câmbio no regime de banda do Plano Real, em 1994. Assim como o Brasil, a Argentina viveu a hiperinflação — quando o dado mensal superou 100% — nos anos 1990. Waldman lembra que, à época, o país conseguiu superar a inflação, como os demais da América Latina. No entanto, a convertibilidade para o dólar, que reduziu os aumentos de preços, levou a uma crise profunda em 2001. “Ao sair daquele regime, não voltamos a lidar com inflação imediatamente, mas tivemos um problema significativo de desemprego. Foi necessário direcionar políticas para reduzi-lo e aumentar os salários e a proteção social”, relembra o economista. Mas, diferentemente dos demais países da região, desde 2006, a inflação voltou a subir na Argentina e não foram implementadas políticas para a reduzi-la. “A continuidade das políticas expansionistas e a negação do problema inflacionário fizeram com que ele se restabelecesse. A situação foi agravada pelo déficit fiscal crescente e pelos ciclos sucessivos de desvalorização cambial”, explica Waldman.
No entanto, para a Argentina acumular reserva cambial suficiente para uma reforma monetária ancorada no dólar, é preciso que entre no país a moeda norte-americana, principalmente via exportações. Para Nogueira da Costa, “a Argentina não aproveitou o boom das commodities dos anos 2000, como fizeram os governos Lula e Dilma, para acumular reserva”. As reservas cambiais brasileiras chegaram a US$ 380 bilhões; atualmente, estão em US$ 355 bilhões. Naquele momento, os países latinos aproveitaram o cenário global de desvalorização do dólar e os altos preços das commodities. Passaram, ainda, a proteger as próprias moedas com taxas de juros positivas. A Argentina, recém-saída da crise de 2001, tinha taxa de juros fixada em cerca de metade da taxa de inflação. Daí a reserva de valor passou a ser feita em dólar, e não em títulos de dívida pública.
De acordo com Lucas Teixeira, docente de Macroeconomia e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da Unicamp, a inflação que a Argentina vive, hoje em dia, não difere da enfrentada pelo Brasil até meados dos anos 1990. Afinal, a característica geral desses processos inflacionários é que são antecedidos por uma crise da dívida. À época, conseguiram combater a inflação por meio da estabilidade cambial. “A técnica do plano é conhecida: você faz uma âncora cambial. A questão é como manejar. O Brasil manteve o câmbio valorizado de 1994 a 1998 — e, quando o abandonou, administrou mais suavemente a saída. A Argentina ficou com o câmbio valorizado muito mais tempo, de 1991 a 2001, com consequências deletérias para a economia”, compara Teixeira.
Nos anos 2000, a Argentina viu uma nova crise de dívida, enquanto o Brasil quitava os empréstimos com o FMI. “O País manteve uma política de juros elevados, com várias consequências negativas, mas que propiciou uma política de acúmulo de reservas”, explica o professor.