Endividamento: um indicador em debate

13 de outubro de 2022

“É difícil voltar ao padrão anterior”, confessa, resignado, Mateus Catena, de 29 anos, enquanto recorda o momento financeiro que ele e sua esposa, Nathália Sanchez, viviam até fevereiro de 2020, mês do registro do primeiro caso de covid-19 no Brasil. Até ali, a renda mensal, em torno de R$ 3 mil – que ambos tiravam de um pequeno negócio de produção de eventos em Goiânia (GO) –, permitia não só pagar todas as contas como, ainda, guardar um pouco de dinheiro para a festa de casamento dos dois.

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No entanto, quando a crise sanitária se instalou no País, e os governos reagiram com medidas de restrição de circulação social, o setor de eventos foi, de longe, um dos mais atingidos. “Fazíamos cerca de 30 formaturas em um intervalo de três meses. Era absurdo. Daí, com a pandemia, ficávamos em casa olhando um para a cara do outro nos fins de semana”, conta Catena.

Os efeitos financeiros também não demoraram a chegar. Para superá-los, o casal primeiro resolveu abrir um negócio em outro ramo – uma fábrica pequena de pães de queijos congelados, que, após dois meses “no azul”, entrou em declínio, por causa da inflação descontrolada dos alimentos. Depois, eles precisaram usar todas as economias, cerca de R$ 12 mil, para saldar as dívidas do empreendimento e, ainda, manter as contas pessoais em dia. Deu certo por pouquíssimo tempo. “Logo o dinheiro acabou, e precisamos recorrer ao cartão de crédito. Quando percebemos, já não estávamos conseguindo pagar a fatura inteira”, relata o pequeno empresário.  

No ano passado, as coisas melhoraram quando Catena, convidado a assumir a gerência comercial de uma empresa, aumentou o faturamento do negócio em pouco meses. Com o dinheiro do salário e dos bônus entrando novamente, ele e Nathália liquidaram as dívidas da fábrica de pães de queijo e a passaram adiante, justamente quando entravam em outra dívida: a do casamento, de cerca de R$ 130 mil, que aconteceu em junho passado.

Hoje casados, já pagaram todas as contas da festa e estão perto de saldar as dívidas de antes – deixando, enfim, a lista da inadimplência. “Estamos quase lá”, comemora o empresário.

Recorde

Nos primeiros dias de setembro, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) divulgou mais um recorde histórico negativo da economia brasileira: há pelo menos duas décadas, o País não tinha tanta gente endividada. Pelos dados, eram quase 8 em cada 10 famílias (79%) nesta situação, em agosto, maior patamar da série histórica da entidade, iniciada em janeiro de 2010.

Mesmo em momentos agudos de uma crise econômica que não arrefece, a linha dos 70% jamais havia sido cruzada. No auge da crise de 2015, por exemplo, 63,5% das famílias brasileiras tinham alguma dívida ativa, segundo a CNC.

Em São Paulo, principal metrópole brasileira, o contexto é semelhante: em agosto, 76,6% das famílias tinham dívidas – um recorde dentro da série histórica da FecomercioSP, que iniciou a pesquisa em janeiro de 2004.

As constatações das entidades empresariais já haviam sido, de certa forma, antecipadas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Em fevereiro, em relatório, o programa afirmou que 7 em cada 10 famílias brasileiras se endividaram durante a pandemia, um fenômeno que mina o futuro da economia do País, à medida que, para a entidade, “muitas destas pessoas poderão enfrentar dificuldades para se inserirem ou permanecerem no mercado consumidor”.

Na análise econômica, chamam-se “endividadas” as famílias que têm alguma dívida em andamento, mas sem atrasos – por exemplo, a fatura do cartão de crédito do mês ou o financiamento de um automóvel. É um universo de pessoas que precisaram recorrer ao sistema financeiro para fazer algum tipo de aquisição, de curto ou longo prazo. O conceito gera confusão com a inadimplência, ou seja, quando há no orçamento doméstico alguma conta já vencida, mas ainda não liquidada, como uma cobrança de luz ou de aluguel que passou do prazo de vencimento. Em agosto, 29,6% dos lares experimentavam esta realidade, pelos números da CNC. Novamente, foi o patamar mais elevado do País desde que a entidade faz a pesquisa.

“Em um contexto de melhora, muitas famílias vão demorar para voltar a consumir, porque estarão pagando as dívidas e os juros contraídos agora.” Guilherme Dietze, assessor econômico da FecomercioSP

Há ainda uma terceira categoria: a das famílias que, mais do que inadimplentes, admitem não ter condições de saldar as dívidas, quando questionadas pelos pesquisadores. É a situação de 10,8% dos lares, no contexto atual. Neste caso, o recorde histórico foi batido em agosto de 2020, no auge da pandemia, quando 12% das casas brasileiras estavam sem recursos para pagar contas já vencidas.

Nos últimos meses, se há um certo consenso sobre os recordes de endividamento e inadimplência no Brasil serem reflexo da alta e do espraiamento da inflação pelos preços da economia, corroendo o poder de compra das famílias, os economistas se dividem na hora de qualificar o fenômeno. É um debate em curso, sobretudo, em torno da condição do indicador de representar a conjuntura econômica brasileira atual e, também, sobre a possibilidade de apontar um patamar considerado aceitável de famílias nesta condição.

Alguns deles observam que mais gente assumindo dívidas expressa um contexto econômico aquecido, no qual a população está recorrendo ao sistema financeiro para o consumo. Assim, a aceleração dos preços seria, em parte, resultado da demanda crescente dos brasileiros, e isso explicaria, de alguma forma, a persistência da inflação elevada. Esta é a percepção do próprio governo federal, por exemplo – que, inclusive, liberou um programa de empréstimo consignado atrelado ao benefício do Auxílio Brasil, como forma de estimular o consumo. O movimento foi bastante criticado por ter o efeito contrário: o de endividar ainda mais.

ESTE CONTEÚDO FAZ PARTE DA EDIÇÃO #472 IMPRESSA DA PB. A VERSÃO DIGITAL DA REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL INTEGRALMENTE NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

Vinícius Mendes Maria Fernanda Gama
Vinícius Mendes Maria Fernanda Gama