Debate econômico atual é sobre a necessidade de o governo ser o vetor dos investimentos no País e, principalmente, a capacidade de o Estado fazer isso sem se endividar mais e causar uma crise macroeconômica.
O debate acerca do aumento dos gastos públicos como vetor de crescimento da economia brasileira não é novo. O País vivencia um histórico intervencionista que, de tempos em tempos, faz com que governos abusem das despesas, pressionando a trajetória dívida/Produto Interno Bruto (PIB). Agora, a proposta de uma nova âncora fiscal que permite o crescimento das despesas revive a discussão da necessidade dessa gastança.
O ponto focal do momento é a concepção do novo arcabouço. A âncora fiscal proposta pelo governo prevê, dentre outras coisas, um limite de crescimento da despesa primária (as que a União tem a obrigação constitucional ou legal de realizar) a 70% da variação da receita dos 12 meses anteriores. Além disso, também estabelece um piso e um teto também para o crescimento da despesa primária, com intervalos entre 0,6% e 2,5% do PIB ao ano (a.a.).
Por ter um viés de expansão dos gastos, a nova regra causa polêmica entre economistas. Enquanto o arcabouço é visto como positivo pelos que defendem o aumento dos gastos de forma controlada como vetor econômico, outros enxergam a proposta como arriscada, dado que ela está toda amparada no aumento dos custos públicos e sem a transparência necessária à obtenção de novas receitas.
Apresentado pelo governo em março deste ano, o novo arcabouço fiscal busca garantir previsibilidade para as contas públicas e, dessa forma, permitir o financiamento de serviços públicos enquanto se mantém a relação dívida/PIB do País sob controle. O instrumento substituirá o teto de gastos, criado em 2016, que limitava o crescimento das despesas ao ano anterior, corrigido apenas pela inflação. A proposta do governo prevê um limite de gastos mais flexível do que a regra anterior, condicionando a uma meta de resultado primário.
Dentre as principais promessas do arcabouço, a nova âncora fiscal prevê que as despesas só poderão crescer 70% da variação da receita dos últimos 12 meses. Por isso, caso o governo arrecade R$ 100 bilhões no período anual, poderá gastar até R$ 70 bilhões. O arcabouço prevê ainda que a despesa não poderá crescer mais de 0,6% a.a. acima do IPCA (a inflação oficial do Brasil), em épocas de contração do PIB, e de 2,5% a.a. acima da inflação em períodos de crescimento da economia. O piso mínimo de investimentos por parte do governo ficará em cerca de R$ 70 bilhões, a ser corrigido pelo IPCA nos próximos anos.
A nova regra busca evitar um descontrole fiscal. Para isso, deverá punir o governo se houver despesa superior a 70% da receita. Nesse caso, no ano seguinte, o limite deverá ser reduzido para 50% do crescimento. Além disso, semelhante às metas de inflação do Banco Central (Bacen), a nova regra deverá prever um intervalo de 0,25%, para mais ou para menos, em relação ao resultado primário. Atualmente, o governo deve estipular um valor exato na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). “É uma regra que compatibiliza o que era bom da Lei de Responsabilidade Fiscal com o que é bom de uma regra de gastos para que a trajetória da dívida esteja no rumo correto”, explicou o ministro Fernando Haddad, em março, quando o projeto foi divulgado.
De acordo com o Ministério da Fazenda, ao controlar os gastos públicos e reduzir o déficit primário, o governo pode criar um ambiente econômico mais favorável ao investimento privado e contribuir para o crescimento nacional. “Quando as empresas têm mais confiança na economia, ficam mais propensas a investir em novos projetos, expandir as operações e contratar novos funcionários. O consenso é de que isso vai impulsionar o crescimento econômico e gerar empregos”, informou o ministério, em nota.
O “X” da questão do debate econômico atual está na necessidade de o governo ser o vetor dos investimentos no País e, principalmente, a capacidade de o Estado fazer isso sem se endividar mais e causar uma crise macroeconômica. Segundo Marcos Mendes, economista e pesquisador do Insper, há um otimismo excessivo com a proposta, uma vez que o novo arcabouço já nasce problemático por ser uma regra para limitar despesas e gerar resultados primários, mas feita por um governo que, segundo Mendes, não acredita nessa dinâmica. Para o economista, o Brasil não tem condições de aumentar o gasto público sem grandes reflexos macroeconômicos. Dessa forma, o governo impôs metas de resultados primários muito arrojadas, mesmo sabendo que dificilmente vai cumprir. “É uma regra bastante complexa na qual a despesa cresce com porcentual do crescimento da receita e, ao mesmo tempo, tem metas de resultado primário. No entanto, essas metas são excessivamente ambiciosas. Então, o primeiro problema é a meta de primário, que é quase impossível de atingir”, completa.
Já André Roncaglia, professor de Economia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em Economia do Desenvolvimento pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), considera que o cumprimento da meta primária possa ser factível, com um ponto positivo para as despesas do governo de forma controlada, de forma a fortalecer o crescimento por meio de gastos estatais. “O limite de 2,5% é um teto que controla a expansão de gasto público em um ritmo que, ainda assim, confere um crescimento em termos reais para despesas primárias. O mero intervalo que limita [entre 0,6% e 2,5%] os gastos já é um avanço substancial em cima do que tínhamos no regime anterior, que constrangia os gastos, principalmente os investimentos em áreas fundamentais”, opina. Ainda de acordo com Roncaglia, a nova regra gera um espaço fiscal importante para que o governo possa manter as atividades e executar as prioridades políticas do mandato, mesmo controlando os gastos.
“O governo impôs um limite para o crescimento de gastos. Entre 2000 e 2015, a despesa pública cresceu uma média de 6% a.a. Agora, o governo faz uma regra que projeta um crescimento que é menos da metade disso quando estiver no limite superior (2,5%). Então, é uma medida de controle de gastos importante”, afirma.
Apesar do controle, agentes do mercado financeiro afirmam que a dívida bruta deverá subir para um intervalo entre 80% e 81% do PIB, segundo a pesquisa Focus, do Bacen. Assim, o novo arcabouço não seria suficiente para controlar a trajetória de endividamento do País. Para Marcos Mendes, mesmo com tantas metas “excessivamente ambiciosas”, o governo não estabilizará o crescimento da dívida pública em relação ao PIB até 2030. “Trata-se de uma regra que não entrega o básico: o controle do crescimento da dívida pública no médio prazo”, destaca.
Caso o Brasil não consiga controlar essa meta via ajustes nas despesas, a solução terá que passar por um aumento da carga tributária. Por isso, dentro do arcabouço, o governo pretende ter uma alta da receita via tributação, a despeito da falta de clareza sobre os parâmetros que trabalha em termos de crescimento.
Não à toa, o ministro Fernando Haddad afirmou que vai apostar em “corrigir distorções tributárias”. Por isso, a expectativa é que o governo consiga arrecadar algo entre R$ 110 bilhões e R$ 150 bilhões com medidas adicionais, como as taxações de plataformas estrangeiras e apostas online e correções tributárias de grandes companhias.
Segundo Roncaglia, a expectativa positiva de gastos para o governo federal deverá fazer com que essas novas arrecadações se tornem a chave do sucesso da nova âncora. “O governo está mirando essas bases arrecadatórias, sem necessariamente criar um imposto novo. Acho que o ponto desse arcabouço é angariar confiança dos setores mais refratários do governo — como o mercado financeiro e o agronegócio —, que tinham medo de um descontrole fiscal, para poder aprovar a mãe de todas as reformas, a Tributária, a qual poderá destravar uma série de forças produtivas que, hoje, estão destinadas a pagar muito imposto em razão da complexidade tributária”, afirma o economista da FEA. Nas projeções de Mendes, do Insper, o governo precisará de cerca de R$ 300 bilhões para fechar as contas do arcabouço — montante muito acima do que Haddad acredita. Por isso, o economista não vê saída para além de um aumento da carga tributária, que atualmente chega a 33,7% do PIB, uma das mais altas do mundo. “É muito dinheiro, não é fechando brecha, tributando jogos eletrônicos, que você vai conseguir essa quantidade. Além disso, o governo superestima medidas judiciais, tributando benefícios fiscais do ICMS, por exemplo, como medidas propostas. Ninguém consegue achar que o governo vai conseguir atingir objetivos só com isso”, afirma. Enquanto o texto é analisado no Congresso, o setor produtivo aguarda sinais claros do governo sobre um possível (e indesejado) aumento de carga tributária, além da tão aguardada simplificação na arrecadação de impostos.