Gastos públicos no divã

07 de junho de 2023

Debate econômico atual é sobre a necessidade de o governo ser o vetor dos investimentos no País e, principalmente, a capacidade de o Estado fazer isso sem se endividar mais e causar uma crise macroeconômica.

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O debate acerca do aumento dos gastos públicos como vetor de crescimento da economia brasileira não é novo. O País vivencia um histórico intervencionista que, de tempos em tempos, faz com que governos abusem das despesas, pressionando a trajetória dívida/Produto Interno Bruto (PIB). Agora, a proposta de uma nova âncora fiscal que permite o crescimento das despesas revive a discussão da necessidade dessa gastança.

O ponto focal do momento é a concepção do novo arcabouço. A âncora fiscal proposta pelo governo prevê, dentre outras coisas, um limite de crescimento da despesa primária (as que a União tem a obrigação constitucional ou legal de realizar) a 70% da variação da receita dos 12 meses anteriores. Além disso, também estabelece um piso e um teto também para o crescimento da despesa primária, com intervalos entre 0,6% e 2,5% do PIB ao ano (a.a.).

Por ter um viés de expansão dos gastos, a nova regra causa polêmica entre economistas. Enquanto o arcabouço é visto como positivo pelos que defendem o aumento dos gastos de forma controlada como vetor econômico, outros enxergam a proposta como arriscada, dado que ela está toda amparada no aumento dos custos públicos e sem a transparência necessária à obtenção de novas receitas.

O QUE É O NOVO ARCABOUÇO?

Apresentado pelo governo em março deste ano, o novo arcabouço fiscal busca garantir previsibilidade para as contas públicas e, dessa forma, permitir o financiamento de serviços públicos enquanto se mantém a relação dívida/PIB do País sob controle. O instrumento substituirá o teto de gastos, criado em 2016, que limitava o crescimento das despesas ao ano anterior, corrigido apenas pela inflação. A proposta do governo prevê um limite de gastos mais flexível do que a regra anterior, condicionando a uma meta de resultado primário.

Dentre as principais promessas do arcabouço, a nova âncora fiscal prevê que as despesas só poderão crescer 70% da variação da receita dos últimos 12 meses. Por isso, caso o governo arrecade R$ 100 bilhões no período anual, poderá gastar até R$ 70 bilhões. O arcabouço prevê ainda que a despesa não poderá crescer mais de 0,6% a.a. acima do IPCA (a inflação oficial do Brasil), em épocas de contração do PIB, e de 2,5% a.a. acima da inflação em períodos de crescimento da economia. O piso mínimo de investimentos por parte do governo ficará em cerca de R$ 70 bilhões, a ser corrigido pelo IPCA nos próximos anos.

A nova regra busca evitar um descontrole fiscal. Para isso, deverá punir o governo se houver despesa superior a 70% da receita. Nesse caso, no ano seguinte, o limite deverá ser reduzido para 50% do crescimento. Além disso, semelhante às metas de inflação do Banco Central (Bacen), a nova regra deverá prever um intervalo de 0,25%, para mais ou para menos, em relação ao resultado primário. Atualmente, o governo deve estipular um valor exato na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). “É uma regra que compatibiliza o que era bom da Lei de Responsabilidade Fiscal com o que é bom de uma regra de gastos para que a trajetória da dívida esteja no rumo correto”, explicou o ministro Fernando Haddad, em março, quando o projeto foi divulgado.

De acordo com o Ministério da Fazenda, ao controlar os gastos públicos e reduzir o déficit primário, o governo pode criar um ambiente econômico mais favorável ao investimento privado e contribuir para o crescimento nacional. “Quando as empresas têm mais confiança na economia, ficam mais propensas a investir em novos projetos, expandir as operações e contratar novos funcionários. O consenso é de que isso vai impulsionar o crescimento econômico e gerar empregos”, informou o ministério, em nota.

MAIS GASTOS PÚBLICOS?

O “X” da questão do debate econômico atual está na necessidade de o governo ser o vetor dos investimentos no País e, principalmente, a capacidade de o Estado fazer isso sem se endividar mais e causar uma crise macroeconômica. Segundo Marcos Mendes, economista e pesquisador do Insper, há um otimismo excessivo com a proposta, uma vez que o novo arcabouço já nasce problemático por ser uma regra para limitar despesas e gerar resultados primários, mas feita por um governo que, segundo Mendes, não acredita nessa dinâmica.  Para o economista, o Brasil não tem condições de aumentar o gasto público sem grandes reflexos macroeconômicos. Dessa forma, o governo impôs metas de resultados primários muito arrojadas, mesmo sabendo que dificilmente vai cumprir. “É uma regra bastante complexa na qual a despesa cresce com porcentual do crescimento da receita e, ao mesmo tempo, tem metas de resultado primário. No entanto, essas metas são excessivamente ambiciosas. Então, o primeiro problema é a meta de primário, que é quase impossível de atingir”, completa.

Já André Roncaglia, professor de Economia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em Economia do Desenvolvimento pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), considera que o cumprimento da meta primária possa ser factível, com um ponto positivo para as despesas do governo de forma controlada, de forma a fortalecer o crescimento por meio de gastos estatais. “O limite de 2,5% é um teto que controla a expansão de gasto público em um ritmo que, ainda assim, confere um crescimento em termos reais para despesas primárias. O mero intervalo que limita [entre 0,6% e 2,5%] os gastos já é um avanço substancial em cima do que tínhamos no regime anterior, que constrangia os gastos, principalmente os investimentos em áreas fundamentais”, opina. Ainda de acordo com Roncaglia, a nova regra gera um espaço fiscal importante para que o governo possa manter as atividades e executar as prioridades políticas do mandato, mesmo controlando os gastos.

“O governo impôs um limite para o crescimento de gastos. Entre 2000 e 2015, a despesa pública cresceu uma média de 6% a.a. Agora, o governo faz uma regra que projeta um crescimento que é menos da metade disso quando estiver no limite superior (2,5%). Então, é uma medida de controle de gastos importante”, afirma.

CRESCIMENTO DÍVIDA/PIB

Apesar do controle, agentes do mercado financeiro afirmam que a dívida bruta deverá subir para um intervalo entre 80% e 81% do PIB, segundo a pesquisa Focus, do Bacen. Assim, o novo arcabouço não seria suficiente para controlar a trajetória de endividamento do País. Para Marcos Mendes, mesmo com tantas metas “excessivamente ambiciosas”, o governo não estabilizará o crescimento da dívida pública em relação ao PIB até 2030. “Trata-se de uma regra que não entrega o básico: o controle do crescimento da dívida pública no médio prazo”, destaca.

Caso o Brasil não consiga controlar essa meta via ajustes nas despesas, a solução terá que passar por um aumento da carga tributária. Por isso, dentro do arcabouço, o governo pretende ter uma alta da receita via tributação, a despeito da falta de clareza sobre os parâmetros que trabalha em termos de crescimento.

Não à toa, o ministro Fernando Haddad afirmou que vai apostar em “corrigir distorções tributárias”. Por isso, a expectativa é que o governo consiga arrecadar algo entre R$ 110 bilhões e R$ 150 bilhões com medidas adicionais, como as taxações de plataformas estrangeiras e apostas online e correções tributárias de grandes companhias.

“É uma regra que vem com problemas desde a origem. Na sua concepção, o novo arcabouço fiscal é uma regra para limitar despesas e gerar resultado primário em um governo que não acredita nessa dinâmica, que acredita que crescimento vem de mais gastos.” Marcos Mendes, economista e pesquisador do Insper

Segundo Roncaglia, a expectativa positiva de gastos para o governo federal deverá fazer com que essas novas arrecadações se tornem a chave do sucesso da nova âncora. “O governo está mirando essas bases arrecadatórias, sem necessariamente criar um imposto novo. Acho que o ponto desse arcabouço é angariar confiança dos setores mais refratários do governo — como o mercado financeiro e o agronegócio —, que tinham medo de um descontrole fiscal, para poder aprovar a mãe de todas as reformas, a Tributária, a qual poderá destravar uma série de forças produtivas que, hoje, estão destinadas a pagar muito imposto em razão da complexidade tributária”, afirma o economista da FEA. Nas projeções de Mendes, do Insper, o governo precisará de cerca de R$ 300 bilhões para fechar as contas do arcabouço — montante muito acima do que Haddad acredita. Por isso, o economista não vê saída para além de um aumento da carga tributária, que atualmente chega a 33,7% do PIB, uma das mais altas do mundo. “É muito dinheiro, não é fechando brecha, tributando jogos eletrônicos, que você vai conseguir essa quantidade. Além disso, o governo superestima medidas judiciais, tributando benefícios fiscais do ICMS, por exemplo, como medidas propostas. Ninguém consegue achar que o governo vai conseguir atingir objetivos só com isso”, afirma. Enquanto o texto é analisado no Congresso, o setor produtivo aguarda sinais claros do governo sobre um possível (e indesejado) aumento de carga tributária, além da tão aguardada simplificação na arrecadação de impostos.

Vinicius Pereira Maria Fernanda Gama
Vinicius Pereira Maria Fernanda Gama