Novo Marco Legal das Startups indica diretrizes para enquadrar as empresas, cria não só direitos como deveres para investidores e sócios e define regras trabalhistas, propondo inaugurar a modalidade de Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI) a fim de privilegiar a contratação pelo setor público de projetos com novas abordagens.
Quase 10 mil startups estão instaladas em território nacional. Juntas, receberam em torno de R$ 12,3 bilhões de investimentos entre janeiro e setembro de 2020, segundo dados da Associação Brasileira de Startups (ABStartups) e da Inside Venture Capital. São empresas que produzem soluções para tecnologia, informática, sistema financeiro, mobilidade urbana, sustentabilidade, entre outros segmentos. Muito embora representem um mercado atrativo para investidores internos e externos, ainda carecem de regras claras e menos burocracia. Só assim se viabilizam estes negócios, que nascem pequenos, mas muitas vezes apresentam produtos e serviços que os tornam gigantes, como Uber ou Airbnb.
O momento é de expectativa para o setor. Isso porque estão em discussão no Congresso Nacional dois Projetos de Lei (PLs) que pretendem instaurar o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (PLP 146/2019, de autoria do Legislativo, e o PLP 249/2020, do Executivo). Na prática, ambos pretendem melhorar o ambiente de negócios, simplificar a criação de empresas do gênero, estimular o investimento em inovação e fomentar o emprego e a inovação. O PLP 146/2019 foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 14 de dezembro, como 361 votos favoráveis e 66 contrários. A proposta, agora, segue para o Senado e deve entrar na fila de votação no primeiro semestre de 2021.
Para Vitor Magnani, head de Assuntos Públicos e Políticas Públicas da Loggi e coordenador do Conselho de Comércio Eletrônico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), o marco é importante, pois a legislação precisa ser adaptada à nova realidade do mundo empresarial – que passa por intensa transformação. “A proposta é baseada na modernização de regras trabalhistas, tributárias e regulatórias. O texto reflete a maioria das ‘dores’ atuais do setor, tendo potencial para ser aprovado rapidamente”, afirma Magnani.
O texto substitutivo elaborado pela comissão especial que analisa a matéria define como startup uma empresa recém-aberta ou em funcionamento há pouco tempo, que tem sua atividade principal baseada na inovação, desde o modelo de negócio até a elaboração de produtos ou serviços oferecidos ao público ou a outras empresas. Deve ter faturamento bruto anual de até R$ 16 milhões no ano anterior; ou, quando a operação for inferior a um ano, deve ser de R$ 1,3 milhão multiplicado pelo número de meses de atividade no ano anterior, com até dez anos de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ).
Outras exigências são a de constar no ato constitutivo, ou alterador, a utilização de modelo de negócios inovador ou estar enquadrada no regime especial Inova Simples.
Especialistas apontam que a regulamentação da modalidade é essencial para atrair investidores interessados em impulsionar o desenvolvimento das empresas que atuam com inovação, sem correr o risco de se depararem com alterações abruptas na legislação. Segundo o deputado federal Vinicius Poit (Novo/SP), relator dos projetos que tramitam no Congresso, a atual legislação (Lei Complementar 167/2019, que criou uma definição legal para startups) não garante segurança total aos investidores, ao passo que as startups vivem em uma espécie de “limbo” burocrático. “O investidor precisa olhar para o Brasil e se animar, e até mesmo o brasileiro, que, muitas vezes, não aplica o próprio dinheiro nesses negócios com medo de arriscar o patrimônio pessoal”, diz.
Para modernizar o ambiente de negócios das startups no Brasil, a ideia é equiparar as normas brasileiras às praticadas em outros países que já contem com um regramento mais organizado. “A legislação brasileira ainda é muito antiquada em vários pontos, não consegue entender e abarcar novas formas de relações de trabalho. As regras precisam acompanhar a transformação do mundo”, opina Maria Rita Spina Bueno, diretora-executiva da entidade de fomento Anjos do Brasil.
O Marco Legal propõe encerrar as dúvidas sobre a denominada responsabilidade do investidor com as práticas adotadas pela empresa em que ele aplica seu capital. Pelo texto, o investidor não deve ser responsabilizado por questões da empresa, pois não é o gestor. Assim, as startups podem aceitar investidores, tanto físicos como jurídicos, mas eles não se tornarão sócios da empresa, não terão direito a interferir na gestão, nem voto em conselhos de administração. Os investidores poderão participar apenas em caráter consultivo, já a relação deve ser descrita em contrato.
“O que falta é trazer incentivo fiscal para equiparar o investimento em startup a um sem risco algum, como fazem países como Inglaterra, Portugal, Israel e Estados Unidos. Este tipo de equiparação é fundamental para startups menores”, opina Maria, da Anjos do Brasil.
A lei em tramitação sugere ainda que a empresa possa vender suas ações aos funcionários como remuneração, oferecendo a eles uma participação no negócio (planos conhecidos como stock options), e valida a possibilidade de o investidor-anjo abater a tributação de uma ação lucrativa, com o prejuízo de outra que detenha na carteira.
De acordo com a FecomercioSP, tendo em vista que as startups nascem sem o capital que lhes possibilite o desenvolvimento pleno dos projetos, a utilização de recursos capazes de engajar parceiros ou colaboradores se mostra plenamente necessária. A Federação alerta, no entanto, que o texto poderia refletir melhor este objetivo porque, do modo como está, pode dar margem à interpretação de que se trata de uma simples remuneração aos colaboradores. Isso, no entendimento da Entidade, iria na contramão do próprio espírito do marco: recompensar futuramente os esforços intelectuais, tendo em vista todo o risco envolvido, inerente a qualquer atividade.
Grande parte das startups tem potencial de se tornar empresas globais, pois oferecem inovações que transformam a forma como o mercado tradicional e o consumo funcionam. Com foco nesta realidade setorial, o Marco Legal quer permitir que startups e outros pequenos negócios se transformem em empresas S/A [Sociedade Anônima] com custos menores. Para o deputado Poit, essa possibilidade estimulará práticas de governança nas empresas, permitirá contratos de acordos de acionistas e aumentará a capacidade de captação de recursos. “Hoje, uma empresa pequena não se transforma em S/A justamente por causa dos custos.”
Uma empresa S/A tem obrigação de publicar o seu balanço em jornais de grande circulação, bem como registrar todas as decisões em atas de assembleia e livros, o que encarece a atividade. O texto proposto prevê a publicação eletrônica de atas e balanços não só para empresas com menos de 30 acionistas, como também com receita bruta anual de até R$ 78 milhões, possibilitando as startups ingressarem nesta modalidade.
No ecossistema de inovação e tecnologia dos Estados Unidos, do Canadá e do Reino Unido, o conceito do sandbox (“caixa de areia”, em inglês) é comum. Trata-se da prática de testes em que produtos e serviços de uma startup são ajustados de forma experimental para garantir o bom funcionamento. Durante esse período de testes, elas recebem autorizações temporárias dos órgãos reguladores para desenvolverem modelos de negócios.
Ao comentar este trecho do projeto, Poit critica a complexidade tributária e a burocracia brasileiras. “As startups precisam de um tempo com menos obrigações acessórias para que o empresário possa testar o negócio no mercado. O texto do projeto propõe que esse sandbox possa existir, pois nem isso a nossa legislação possui.”
De acordo com o estudo Causas da Mortalidade de Startups Brasileiras, elaborado pelo núcleo de inovação e empreendedorismo da Fundação Dom Cabral, em 2015, aproximadamente 25% das startups fecham as portas com menos de um ano de vida; em quatro anos de mercado, 50% das startups não resistem no Brasil; e em até 13 anos, 75% acabam.
O novo Marco Legal também quer facilitar parcerias entre governos e empresas de inovação para testar soluções que aumentem a eficiência do setor público. Dessa forma, a administração pública poderá contratar pessoas físicas ou jurídicas, individualmente ou por consórcios, que participarão de licitações especiais para resolver problemas tecnológicos do dia a dia.
A startup vencedora do certame assinará um Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), com vigência limitada a um ano, podendo ser prorrogado por mais 12 meses. O valor de cada contrato não pode ultrapassar R$ 1,6 milhão, e os pagamentos podem ser estabelecidos mediante critérios a serem estabelecidos de acordo com a peculiaridade de cada contratação. A proposta permite ainda que os contratos estabeleçam a possibilidade de pagamento antecipado de uma parcela do valor total, para que a empresa consiga manter seu capital de giro durante o período de prestação do serviço.
Para não perder a continuidade de serviço prestado com bons resultados, a entidade pública e a startup podem celebrar um novo contrato de duração máxima de dois anos, que pode ser prorrogado por mais 24 meses.