No Brasil, 45 milhões de pessoas acima dos 16 anos não têm, nem movimentam, conta bancária. Entre as razões para a desbancarização, estão a falta de dinheiro e a desconfiança nas instituições. A tecnologia digital se mostra a principal solução para mudar este cenário e promover a inserção bancária
De acordo com dados da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), entidade que congrega 121 instituições financeiras, o sistema bancário nacional fechou o ano de 2018 com 155 milhões de contas ativas, volume considerável para uma população estimada em 209,3 milhões de habitantes (IBGE, 2017). Visto isoladamente, o dado pode sinalizar uma realidade pujante, mas a 30 quilômetros da paulistana avenida Faria Lima, onde está sediada a Febraban, o cenário é totalmente diverso. No Jardim Aracati, extremo sul da capital, a referência para pagamento das contas de água, luz e telefone não é uma moderna agência, tampouco o aplicativo de banco digital. “Vem todo mundo aqui na Papelaria da Vilma”, conta, sorridente, a pequena comerciante Vilma Jesus da Silva Santos, dona de um espaço de 24 metros quadrados na principal avenida do bairro. Por intermédio de um aplicativo de meios de pagamento, Vilma se tornou a “correspondente bancária” do bairro e efetua cerca de 60 operações por dia. O volume ajuda no pé de meia, já que recebe R$ 0,20 a cada conta paga. “São pessoas que não têm conta em banco. Aqui, não tem agência ou casa lotérica. As mais próximas ficam a 40 minutos de ônibus, no Jardim Ângela”, diz ela.
O contraste entre o excesso de recursos e a precariedade está retratada na pesquisa Desafios Para Bancarização, divulgada pelo Instituto Locomotiva no fim do ano passado. O levantamento revelou a existência de 45 milhões de brasileiros acima de 16 anos – quase um terço da população ativa – que não possuem ou movimentam conta bancária há mais de seis meses. O estudo apontou ainda que 86% estão inseridos nas classes C, D e E – dos quais 62%, fora das capitais.
Segundo a pesquisa, as principais razões para não ter conta em banco são a falta de dinheiro para guardar em uma instituição financeira (31%), a opção pelo uso de dinheiro vivo (29%), a falta de vontade de ter uma (25%), as altas tarifas (18%), o desemprego (13%) e a falta de confiança nessas empresas (11%).
Quando questionados a respeito da confiança passada pelos bancos, os resultados foram implacáveis – apenas 25% dos desbancarizados admitiram confiar nas instituições bancárias. “As pessoas desconfiam dos bancos, que são a única rede de varejo com detector de pobre na entrada – no caso, a porta giratória. A população também prefere usar a moeda corrente no dia a dia, para controlar os gastos e obter mais descontos na compra no mercadinho do bairro”, afirma o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles.
Hábitos tradicionais, como comprar fiado (69%), usar cartão de crédito de outra pessoa (51%) e pedir empréstimo a parentes (45%), são comuns entre os desbancarizados, que, apesar de excluídos, movimentam volumes relevantes na economia. Segundo estimativa do Instituto Locomotiva, o montante gira em torno de R$ 800 bilhões anuais.
Para Guilherme Dietze, assessor econômico da FecomercioSP, ainda há um desconhecimento, por parte da população, do surgimento de bancos digitais, que não cobram taxas de manutenção nem possuem agências físicas. “Bancos como Nubank, Original e Inter estão restritos a bolhas nos centros urbanos. No interior, o que prevalece são práticas antigas, principalmente entre os que exercem funções menos qualificadas”, diz.
A desbancarização está longe de ser uma “jabuticaba”. Na verdade, o índice brasileiro de 29% está alinhado à média mundial, de acordo com o estudo Global Findex, divulgado pelo Banco Mundial em 2017.
No planeta, existem 1,7 bilhão de desbancarizados, dos quais 50% estão concentrados em sete países em desenvolvimento: Bangladesh, China, Índia, Indonésia, México, Nigéria e Paquistão. Nestas nações, 40% dos desbancarizados vivem nas regiões mais miseráveis, longe de agências e infraestrutura de telecomunicações. O levantamento conclui que a difusão da tecnologia digital é a saída adequada para promover a inserção bancária nessas camadas da população.
Para especialistas internacionais, o maior desafio a ser combatido é a falta de identidade financeira do cidadão, que atinge tanto os desbancarizados como as pessoas com dificuldade de acessar crédito nas instituições.
Nascida há cinco anos no Vale do Silício (Estados Unidos) e presente em 26 países, a Juvo tem se dedicado a desenvolver soluções digitais B2C (do inglês business to consumer, ou seja, “da empresa para o varejo”) que promovam a inclusão financeira daqueles que se acostumaram a ouvir um sonoro “não” ao buscar qualquer espécie de crédito.
O modelo da Juvo se baseia no sistema de pontuação (scores) e conta com avançados recursos de machine learning [aprendizado da máquina em tarefas desempenhadas por pessoas] e algoritmos [sequência de comandos digitais para execução de determinada tarefa]. Hoje, é disponibilizado para operadoras de celular, mas pode ser replicado em outras áreas de varejo. Funciona como uma recarga emergencial para celulares pré-pagos, com a vantagem de o cliente não precisar se deslocar a uma banca de jornal ou farmácia.
Vilma Jesus da Silva Santos, dona da Papelaria da Vilma, localizado no Jardim Aracati, extremo sul da capital paulista
Dispostas a ocupar espaços em que os bancos não conseguem ou não têm disposição para entrar, as fintechs já descobriram o nicho dos desbancarizados. Segundo a pesquisa Fintech Deep Dive 2019, da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), 33% das 208 empresas brasileiras atuam no setor de meio de pagamentos. “As que lidam com o público de baixa renda se comunicam melhor do que bancos e financeiras. Elas conseguem engajar o cliente”, afirma o diretor da ABFintechs, Diego Perez.
Crescer em um mercado dominado por cinco grandes bancos é um tremendo desafio, mas o Celcoin tem mostrado que é fundamental estar na hora e no lugar certos. “Abri a empresa em 2016, após tomar conhecimento de um estudo que apontava o fechamento gradativo de agências físicas e a tendência de as pessoas pagarem as contas em dinheiro, nas casas lotéricas. Havia crescimento da informalidade e pessoas dispostas a pagar as contas”, recorda o cofundador do Celcoin, Adriano Meirinho.
Por meio do aplicativo, o smartphone cumpre a função de um terminal POS (point of sale, na sigla em inglês, ou “ponto de venda no comércio”), capaz de receber pagamentos, fazer recargas e consultar CPF. Hoje, o Celcoin conta com 22 mil agentes e está presente em 2,2 mil cidades, 65% nas regiões Norte e Nordeste.
Segundo Meirinho, os agentes atendem mensalmente em torno de 1,5 milhão de desbancarizados. Em 2020, pretende investir R$ 5 milhões em tecnologia e tem como meta alcançar 50 mil agentes em todo o País. “Noto que os bancos não se interessam por estes clientes, não são rentáveis”, afirma.
Fundada em São José dos Campos (SP) no mesmo ano em que o Celcoin foi criado, a Moneto surgiu de um desafio vivido pelo engenheiro Marcos Arruda, que sentia dificuldades por ter que pagar, sempre presencialmente, um trabalhador desbancarizado.
Pelo aplicativo, o trabalhador abre uma conta digital na Moneto e recebe um cartão pré-pago. Ele emite um boleto, o documento é pago e o valor vai para a conta digital da Moneto, que repassa ao emissor. A rentabilidade da empresa vem da emissão desses boletos (R$ 4,99 cada) e do uso dos cartões (R$ 3,99).
“Cerca de 40% dos clientes da Moneto são desbancarizados. A maioria é do Nordeste e da periferia de grandes capitais. Nosso investimento em marketing é zero, é tudo no boca a boca”, garante Arruda.
Em vigor desde julho passado, a nova regulamentação do Cadastro Positivo deve facilitar o acesso ao sistema de crédito bancário para aproximadamente 23 milhões de pessoas sem conta, segundo estimativa do economista-chefe da Serasa, Luiz Rabi.
“São cidadãos adimplentes, mas ignorados pelo sistema financeiro, pois, até então, só estavam disponíveis as informações passadas pelos bancos ao Banco Central”, diz.
Até o fim do ano, diz Rabi, as operadoras de telefonia e as distribuidoras de energia terão acesso às informações cadastrais, o que permitirá aos birôs de crédito (como a Serasa) obter dados mais precisos para determinar o perfil de risco de cada CPF. “Em 2021, já deveremos ter resultados”, diz o economista.